Lucas Gelape
Doutorando em Ciência Política
Universidade de São Paulo
Um dos palcos principais dos conflitos entre a presidência da República e os chefes de Executivo subnacionais, a cidade de São Paulo foi o local do diagnóstico do primeiro caso da doença no país, em 26 de fevereiro. Desde então, ela lidera o número absoluto de casos, tendo atingido 3.754 casos diagnosticados e 244 mortes (até a atualização de 06/abril feita pela secretaria estadual de saúde).
Sede da principal metrópole brasileira, São Paulo é o município mais populoso do país, com população estimada em cerca de 12,25 milhões de habitantes em 2019, segundo o IBGE. Dados do Censo de 2010 mostram que a cidade está no percentil mais rico em termos de renda per capita por município, além de se encontrar também no primeiro percentil do indicador de desenvolvimento humano municipal. Apesar disso, seu território envolve severas desigualdades regionais, que demandam atenção especial na elaboração e implementação de políticas públicas 1 e adicionam desafios no combate à pandemia.
Nesta segunda-feira (06/04), o governador João Doria e o prefeito Bruno Covas anunciaram a extensão do período de quarentena (que se encerraria hoje) por mais 15 dias, mantendo todos os serviços não essenciais fechados. Prefeito e governador estão alinhados em endurecer a fiscalização para que somente as atividades essenciais sejam mantidas. Doria falou em utilizar a polícia militar para dissipar aglomerações, enquanto Covas alertou que a orientação é lacrar estabelecimentos abertos contra as determinações da prefeitura e, em caso de reincidência, cassar o alvará de funcionamento.
As medidas de combate à Covid-19 na cidade estão em forte sintonia com aquelas adotadas pelo estado 2. Ambos são governados por políticos do PSDB: o prefeito Bruno Covas chegou ao cargo após o governador João Doria renunciar à prefeitura em abril de 2018 para concorrer ao Palácio dos Bandeirantes. Apesar de se recuperar de um câncer diagnosticado em outubro do ano passado, Covas, candidato à reeleição 3 , acompanha ativamente o combate à doença e participa de coletivas conduzidas pelo governador – sempre às 12h30, com o objetivo de atingir ao vivo o público do SPTV1, principal telejornal local (Rede Globo).
Em 12/03 o Ministério da Saúde confirmou a transmissão comunitária do novo coronavírus na cidade. Desde então, a prefeitura adotou uma série de medidas de combate à Covid-19. Dentre elas, se destacam a decretação de quarentena (em 18/03, com validade a partir de 20/03, alguns dias antes do governo estadual), com o fechamento dos serviços não essenciais de comércio, além da decretação de calamidade pública (20/03). A primeira medida visa reduzir o número de pessoas circulando nas ruas, promovendo o isolamento horizontal, enquanto a segunda, reconhecida pela Assembleia Legislativa, permitiu a suspensão de limites estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, liberando espaço orçamentário para a adoção de medidas de combate à crise que tragam impactos financeiros ao município. Em 13/03, o prefeito já havia suspendido eventos públicos e determinado que as aulas da rede municipal deveriam ser suspensas gradualmente na semana iniciada em 16/03.
Políticas públicas de saúde
Segundo levantamento da equipe do SPTV (Rede Globo), com dados atualizados em fevereiro do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da Saúde, a cidade de São Paulo tem 3.830 leitos de UTI, sendo 38% desses pelo SUS. Conforme relatou o prefeito Bruno Covas nesta segunda (06/04), apesar da criação de cerca de 900 novos leitos de UTI desde o início da crise, o sistema de saúde municipal já sente a pressão advinda do crescimento do número de casos na cidade. No domingo (05/04), a Folha de São Paulo informou que uma auditoria do Tribunal de Contas do Município encontrou déficit de 40% de funcionários no sistema hospitalar paulistano, com taxa crescente nos últimos anos. Segundo a reportagem, tal fato é agravado pelo afastamento de profissionais com suspeitas de Covid-19, que já totalizavam 1.841 (9% dos funcionários da Autarquia Hospitalar Municipal). Ainda na área da saúde, desde o início da crise, a prefeitura anunciou o investimento de R$ 1,1bi, adiou o período de férias de profissionais de saúde em 60 dias, instalou 2100 leitos de baixa complexidade e criou um comitê técnico-científico de combate a doença.
Assim como no restante do país, um dos principais gargalos para a formulação de políticas públicas é a subnotificação do número de casos diagnosticados, que se deve tanto à falta de testagem quanto à demora para análises. A importância desses dados não vem de “[…] simples curiosidade científica, dele depende a estratégia que adotaremos para sair do distanciamento social e da crise econômica”, destacou Fernando Reinach em artigo recente no jornal O Estado de São Paulo4 . Segundo o G1, em 30/03 o Instituto Adolfo Lutz, do estado de São Paulo, tinha capacidade de dar resultados para 400 testes por dia, enquanto a demanda era de 1.200, o que já tinha ocasionado uma fila de espera de 14mil testes (à época) para todo o estado. A prefeitura e governo do estado informaram investimentos para ampliar esta capacidade para 10.000 testes pelo SUS.
Outras políticas públicas
Num município altamente dependente do transporte público, que já contava com três horários de pico, a mobilidade urbana se revelava um complicador para a implementação de medidas de distanciamento social. Inicialmente, o rodízio municipal foi suspenso para incentivar a utilização do transporte privado, e ônibus passaram a ser higienizados diariamente. A SPTrans apontou uma queda do número de passageiros para 23% da média diária em dias úteis, levando a uma redução do número de ônibus em circulação para 40% da sua capacidade em 30/03. Essa medida foi duramente criticada por especialistas, Ministério Público do Trabalho e pela população, por causar aglomerações no transporte público – justamente o que deveria ser evitado, segundo recomendações de órgãos de saúde. Após as críticas, o órgão anunciou a reintrodução de veículos na cidade, atingindo 49,7% da frota no dia 07/04. Dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento indicaram ainda que a cidade apresentou uma queda de cerca de 90% na intensidade de congestionamento de trânsito em relação à primeira semana de março, sinalizando uma redução no número de pessoas circulando. Contudo, nos últimos dois dias este indicador mostrou que mais carros voltaram às ruas (no domingo, 05/04, a redução em relação à primeira semana de março foi de 64,3%).
Fonte: Orrico, Alexandre e Sérgio Spagnuolo. Apesar de quarentena, Brasil tem aumento de trânsito no fim de semana. Núcleo Jornalismo, 06 de abril de 2020.
Na área de assistência social, reportagens na Folha de São Paulo deste fim de semana (04 e 05 de abril) também revelaram desafios relacionados à alimentação de setores da população que necessitam do apoio do Estado. Pessoas em situação de rua, cujo número aumentou significativamente nos últimos anos no município, têm encontrado longas filas em pontos de distribuição de refeições ou nos restaurantes Bom Prato (restaurantes populares do governo do estado), enquanto estado e município não conseguem implementar novas políticas para a área. O governo do estado adaptou a distribuição de refeições a embalagens descartáveis, e a prefeitura lançou edital para credenciar restaurantes para distribuição de refeições, além de ter criado seis serviços de acolhimento à esta população. Diversas famílias têm problemas para se alimentar, devido a perda de empregos e às crianças em casa (sem fazer refeições nas escolas). Tanto a prefeitura quanto o governo do estado lançaram programas de auxílio a tais famílias, sendo que os repasses municipais iniciaram em 02/04.
Outra política pública de grande visibilidade na cidade e que introduz uma camada adicional de dificuldade no combate ao novo coronavírus é a de auxílio à população dependente de drogas na região da Cracolândia. No domingo, 05/03, a Folha de São Paulo noticiou que será fechada a unidade de Atendimento Diário Emergencial da região que oferece diversos serviços às pessoas que ali circulam. Tal é medida criticada por organizações envolvidas na redução de danos aos dependentes, que destacam que as condições do local aumentam os riscos da disseminação da doença.
Desafios futuros
Em estudo divulgado na coletiva desta segunda (06/04), a prefeitura divulgou que as medidas implementadas retardaram o pico de internações, que era previsto para a primeira semana de abril, segundo projeções do Instituto Butantan e Universidade de Brasília. Até o momento, foi possível evitar o colapso do sistema de saúde municipal, mas o risco ainda existe5 .
A importância econômica e política do município, somada aos conflitos constantes entre o governador do estado e o presidente, mantêm São Paulo sob os holofotes. Os principais desafios diante da administração municipal nas próximas semanas e meses são semelhantes àqueles de outras grandes capitais. Primeiramente, garantir que os piores cenários sejam evitados, com a manutenção de várias das políticas adotadas, mesmo com sinais de esgotamento da população com as políticas de quarentena (sugerido pelos indicadores de retorno dos congestionamentos, além de evidências anedóticas reportadas pela imprensa) e com a campanha ativa do presidente da República e de setores da população e do empresariado contra o isolamento social. Nesse sentido, como sugeriu Manoel Galdino em artigo recente 6 , transparência e dados podem ser centrais para traçar estratégias e informar a população. Em segundo lugar, alcançar as populações tradicionalmente menos assistidas pelo poder público, como em periferias e favelas, são fundamentais tanto para combater a incidência da doença nessas regiões, quanto mitigar os efeitos econômicos advindos da crise. Além disso, é essencial que a capacidade de testes seja expandida, para que governos e sociedade civil tenham números mais confiáveis para desenhar e implementar políticas públicas e possam encontrar saídas para a crise. O desafio final é planejar como se dará a retomada das atividades econômicas, evitando novos surtos que pressionem o sistema de saúde e reintroduzindo alguma normalidade na vida da maior cidade brasileira.
Acompanhe a série do Nepol.
1)Para alguns estudos sobre desigualdades regionais em São Paulo, cf. a coletânea Marques, Eduardo. (org.) A metrópole de São Paulo no século XXI: espaços, heterogeneidades e desigualdades. São Paulo: Editora Unesp, 2015. Disponível em: https://politicadourbanocem.wordpress.com/sao-paulo-2010/
2)A prefeitura de São Paulo frequentemente destaca a cooperação entre os dois entes federados. Por exemplo, cf. os seguintes links: http://www.capital.sp.gov.br/noticia/coronavirus-confira-as-acoes-apresentadas-nesta-segunda-feira-23 e http://www.capital.sp.gov.br/noticia/coronavirus-prefeitura-de-sao-paulo-apoia-acoes-do-governo-do-estado .
3)Em pesquisa Ibope divulgada em 23 de março, em cenário estimulado o prefeito aparece segundo lugar, com 18% das intenções de voto, atrás de Celso Russomano (24%). Disponível em: https://www.ibopeinteligencia.com/noticias-e-pesquisas/neste-momento-celso-russomanno-aparece-numericamente-a-frente-mas-tecnicamente-empatado-com-bruno-covas-na-disputa-pela-prefeitura-de-sao-pa/ .
4)O artigo faz uma excelente discussão sobre causas da subnotificação e porque elas importam: Reinach, Fernando. Testes de baixa qualidade. O Estado de S. Paulo, 4 de abril de 2020. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,testes-de-baixa-qualidade,70003259944. Em artigo recém-publicado, Nate Silver também explica como pode ser problemático o uso o número de casos para comparação entre estados (nos EUA) e países, descrevendo como a subnotificação pode afetar esta contagem: https://fivethirtyeight.com/features/coronavirus-case-counts-are-meaningless/.
5)No estado, a projeção do Instituto Butantan e Universidade de Brasília é de 111mil mortes nos próximos seis meses, com a manutenção das medidas já adotadas, e 277mil sem tais restrições. Figueiredo, Patrícia. SP prevê 1,3mil mortes por coronavírus até o dia 13; sem isolamento social, estimativa seria de 5 mil. G1, 06 de abril de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/06/sp-preve-1300-mortes-por-coronavirus-ate-13-de-abril-sem-medidas-de-isolamento-social-estimativa-seria-de-5-mil-mortes.ghtml
6)Galdino, Manoel. Como dados e transparência podem ajudar no combate ao coronavírus. Folha de S. Paulo, 21 de março de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/como-dados-e-transparencia-podem-ajudar-no-combate-ao-coronavirus.shtml
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