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Pablo Marçal não é candidato em Anori

Atualizado: 19 de set.

Por Nara Salles


Recentemente, me deparei com uma nuvem de palavras de um programa de governo de um candidato a prefeito do Amazonas em 2012 que trazia com algum destaque a palavra “cinema”. A cidade era Anori, cuja população totalizava 17.194 pessoas em 2022. Em 2010, a cidade tinha 2% de saneamento básico adequado e só 0,2% de urbanização das ruas. Os dados são do IBGE Cidades. Meu primeiro pensamento foi: “por que as pessoas estão propondo políticas relacionadas a cinema no interior do Amazonas?”.

Cinema de rua em Anori - Amazonas

Sem querer relevar o preconceito desse questionamento, que muito me envergonha, apostaria que ele seria comum à maioria das pessoas quando relatado o caso. Isso não melhora a situação. Na verdade, piora. Porque incorpora de modo concreto as lentes sob as quais temos enxergado os municípios no Brasil, especialmente os menores e os menos desenvolvidos. A esses lugares costuma caber pouca coisa além da sobrevivência da população – e, para muitos, dos coronéis –, quem dirá programas de governo e suas propostas, sejam elas de cinema ou não.

Fato é que o Brasil é um grande conjunto de Anoris. Afinal, não custa lembrar que, de acordo com o Censo 2022, cerca de 69% dos municípios brasileiros possuem até 10 mil habitantes e outros quase 19% têm entre 10 mil e 50 mil habitantes. Será, então, que os programas de governo não cabem ao Brasil?

Para muitos, programas de governo são mera formalidade, documentos protocolares que visam cumprir uma exigência legal, mais especificamente, da Lei 12.034/2009. Apesar disso, a mesma lei não indica nenhuma sanção para candidatos que não registram suas propostas, que, inclusive, têm tido suas candidaturas normalmente deferidas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Em geral, essa obrigação não tão obrigatória assim tem sido cumprida e tenho me debruçado sobre esses documentos em minhas pesquisas. Via de regra, pude concluir que, em um mesmo município, os candidatos se diferenciam de seus oponentes no que se refere às propostas apresentadas – o que avalio como uma das funções mais relevantes que os programas de governo têm cumprido.

placa "Sejam Bem-Vindos a Anori - AM"

Mais recentemente, no âmbito do projeto Vota Aí!, que coordeno ao lado da Prof.ª Argelina Figueiredo (IESP-UERJ), identificamos os principais temas das propostas registradas no TSE em 2020 e em 2024. Na primeira eleição, por exemplo, a questão da saúde se desdobrou em tópicos específicos para além da atenção primária, como os sobre pandemia e vigilância epidemiológica. Em 2020, eles apareceram próximos aos tópicos de cemitérios – infelizmente, um tema importante naquela oportunidade. Em 2024, por sua vez, esses tópicos não se repetiram, e o principal tema foi desenvolvimento sustentável, que interpretei como uma junção de infraestrutura e agricultura com alguma consciência ambiental. Ou seja, parece haver alguma conexão entre os temas mobilizados nos programas de governo e o “mundo real” – algo que pode parecer, mas não é trivial.

Esses apontamentos parecem um tanto quanto esquisitos quando considerados sob as mesmas lentes que estranharam as propostas de cinema em Anori (AM) – e aí a questão não é mais especificamente sobre os programas de governo, mas sobre como eles exemplificam a maneira com que tradicionalmente pensamos a política nos municípios brasileiros.

Ainda hoje, parte da literatura continua mobilizando Victor Nunes Leal para explicar o que se passa nas pequenas localidades, com seus eleitores pouco escolarizados e pobres. Outro autor que geralmente aparece nessa discussão é Olavo Brasil de Lima Júnior, com seu conceito de racionalidade contextual. Dispensável ressaltar a importância desses autores para a compreensão de dinâmicas políticas determinadas. Mas será que seus trabalhos ainda conseguem explicar a política contemporânea e seus fenômenos, como o uso das redes sociais?

A escassez de estudos sobre a dinâmica política dos 88% dos municípios com menos dos 50 mil habitantes acaba ajudando que essas localidades sejam caracterizadas como politicamente “atrasadas” ou “específicas”, “locais”. A literatura sobre sistemas eleitorais e incentivos ao voto pessoal também contribui para isso, com a visão de que nesses municípios estariam circunscritos os redutos eleitorais onde se perpetuam práticas clientelistas e votos pouco partidarizados, que, no Brasil, estão elegendo bancadas cada vez mais conservadoras.

Esse panorama estaria em contraste com os cenários das capitais e grandes cidades, marcados pela presença de partidos “mais institucionalizados” e maior alinhamento nacional, em geral justificados pela visibilidade que as eleições nesses municípios possuem.

Naturalmente, é preciso considerar a dificuldade e a complexidade de se realizar pesquisas em território nacional, no que se refere ao financiamento, custos, disponibilidade. No entanto, é cada vez mais necessário olhar para os pequenos municípios. Primeiro porque, independentemente do nível de disputa, o eleitor está sempre situado na cidade – e é lá que a sua vida acontece. Isso significa que, se o contexto se relaciona com a maior ou menor predisposição do eleitorado para a participação política efetiva, ou mesmo com a quantidade e a qualidade de informações que conseguem obter e absorver, seu impacto se estenderá às demais eleições.

Os acontecimentos dos últimos anos também têm demonstrado que “atrasos” políticos não são uma particularidade dos pequenos municípios. Afinal, a família Bolsonaro construiu sua trajetória no Rio de Janeiro, uma das principais e maiores cidades do país, e mais recentemente, Pablo Marçal aparece empatado em primeiro lugar na disputa para a prefeitura em São Paulo, maior cidade da América Latina. Pablo Marçal é candidato em São Paulo, não é em Anori.




Nara Salles é Pesquisadora do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: nsalles@unicamp.br

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