Celina Souza
Pesquisadora Visitante do IESP - UERJ
Desde os anos 90 do século passado, os municípios passaram a ter papel central na provisão de políticas sociais universais. Superaram, portanto, o estigma que lhes pesava durante o regime militar, de que seus prefeitos seriam meros construtores de fontes luminosas. A despeito da persistência de visões ainda distorcidas do seu papel, principalmente a de contratantes irresponsáveis de pessoal, inflando as despesas municipais e violando as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal, todos os dados mostram o papel crucial dos municípios no nosso modelo de bem-estar social, que ainda está em construção e relativamente subfinanciado.
A decisão de tornar o município o principal executor de políticas sociais para os grupos mais vulneráveis foi política, porque aprovada primeiro na Constituinte e depois pelo Congresso através de emendas constitucionais e de legislação infraconstitucional, que colocaram em operação os principais, mas não todos, direitos sociais aprovados na Constituição de 1988. Essa decisão política tornou o município brasileiro no principal provedor das políticas de atenção básica à saúde, de ensino básico e de parte da assistência social, ou seja, de políticas sociais universais.
Diferente de algumas federações, que deslocaram competências em políticas sociais para as esferas subnacionais sem mecanismos de coparticipação financeira, tais como os EUA, com Reagan, e a Argentina, com Menem, o modelo brasileiro é financiado pelas três esferas de governo, através de fundos específicos, é altamente regulado, e provido majoritariamente pelos municípios. No caso da educação e da saúde, os recursos das três esferas são constitucionalmente vinculados às suas receitas. Os dados abaixo têm o objetivo de trazer evidências às afirmações acima.
Distribuição de recursos tributários
Contrariamente ao que em geral é afirmado, a parcela que cabe aos municípios na distribuição dos recursos públicos nacionais não parou de crescer na última década, inclusive após a recessão dos anos recentes e da chamada PEC do Teto dos Gastos. Esse equívoco decorre do fato de que as transferências intergovernamentais são relativamente altas no Brasil, superando, em muito, a arrecadação direta dos municípios. A União arrecada 65% do total, retém 54% e repassa para estados e municípios 11%. Os estados arrecadam 27%, ficam com 25% e repassam 2% para os municípios. Já os municípios arrecadam 7,5% e ficam com 20,7%. Essas transferências são responsáveis pelo financiamento das políticas sociais universais a cargo dos municípios. Se, por um lado, a baixa participação da receita própria diminui a autonomia decisória local para investir em outras políticas que não as universais, as transferências de recursos vinculados a políticas sociais reduzem a loteria do local de nascimento, tendo sido a estratégia para implantar padrões nacionais em um país desigual e de dimensão continental.
Tabela I - Distribuição de recursos tributáveis entre esferas de governo, incluindo transferências intergovernamentais: 1960/2019 (%)
Fonte: Afonso e Castro (2020) 1
A partir da 2014, quando tem início a recessão econômica, a arrecadação federal e estadual como percentagem do PIB decresce, com leve recuperação em 2019, mas a da esfera local continuou registrando crescimento. Como sabemos, a chegada da pandemia afeta a arrecadação dos três níveis de governo. No entanto, o Judiciário e o Congresso estão adotando uma série de medidas capazes de compensar as perdas das esferas subnacionais, principais responsáveis pelo combate à pandemia.
Gastos sociais dos municípios
Excluídos os programas federais de transferência de renda (Bolsa Família e BPC), os municípios apresentam aumento crescente de recursos nas políticas sociais vis-à-vis as demais esferas de governo. No caso da saúde, dados de 2017 mostram que o governo federal ainda é o principal financiador, seguido pelo município. O estado fica em terceiro lugar. Mas os recursos locais não são só das transferências, com crescente aumento das receitas próprias. Em 1972, por exemplo, os governos locais aplicavam em educação, cultura e saúde 20,49% de suas receitas próprias e em 2012, 49,86%, ou seja, um aumento de 2.43 vezes. No caso da educação, o governo federal diminuiu sua participação de 23,8% em 1995 para 19,7% em 2009, o estadual, que ainda é o maior financiador devido à vinculação de suas receitas ao ensino básico, reduziu sua participação de 48,3% para 41,2% no mesmo período, enquanto que os municípios passaram de 27,9% para 39,1%. No caso da assistência social, os municípios, através dos CRAS e dos CREAS, são os principais financiadores e implementadores dessas políticas, com exceção do Bolsa Família e do BCP.
Como os municípios proveem esses serviços sociais universais? Como sabemos, esses serviços são intensivos em mão-de-obra, o que implica na ampliação dos gastos com pessoal. Por isso, a participação dos municípios na força de trabalho do setor público nacional cresceu de 38%, em 1995, para 57%, em 2016, enquanto a dos estados e a do governo federal decresceu. Aumentou também o nível de escolaridade. Servidores com nível superior passaram de 19%, em 1995, para 38%, em 2016. Do total de servidores, 40% integram o núcleo dos serviços de educação ou saúde (professores, médicos, enfermeiros e agentes de saúde). Apesar de empregar mais da metade da força de trabalho do setor público, o seu custo é baixo vis-à-vis os demais níveis de governo e esferas de poder.
Tabela 2 - Remuneração média mensal do setor público, por níveis federativos e poderes (2007 - 2016)
Fonte: Ipea, Atlas do Estado Brasileiro (2019)
Esses números apontam para um dos principais dilemas dos prefeitos: prover serviços sociais universais demandados pelos eleitores ou cumprir os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal? Mostram, também, que a acusação, principalmente de parte da mídia, de que prefeitos inflam a folha salarial com contratações clientelistas, não se sustenta.
E hoje?
Os dados acima mostram o esforço significativo dos três níveis de governo para financiar e administrar a provisão de políticas sociais universais. Apesar desse esforço, estamos ainda distantes dos cumprimentos das promessas da Constituição de 1988. O gasto per capita da saúde, por exemplo, é menor do que países como a Rússia e a Argentina, e a qualidade da educação continua sendo um desafio, como mostram os dados do Brasil no PISA.
A engenharia constitucional da provisão das políticas sociais universais é hoje também ameaçada pela PEC do Teto dos Gastos, que afeta as dotações orçamentárias para saúde e educação do orçamento federal, que caíram, respectivamente, 17% e 19% em 2017. O corte de outros programas financiados pelo governo federal, como os Mais Médicos, e as tentativas de não mais conceder ganhos reais ao salário mínimo, também afetam não só as finanças locais como a provisão de serviços sociais universais. No mesmo veio, as propostas da chamada revisão do pacto federativo, que descentralizaria recursos federais para as esferas subnacionais, desmonta a engenharia financeira e social da Constituição de 1988, baseada na solidariedade entre regiões e na estratégia de prover padrões universais para a provisão de serviços sociais. Essas ameaças, contudo, estão hoje mais amenizadas porque a pandemia mostrou a toda a população brasileira a enorme importância e engenhosidade do SUS e o papel dos municípios na atenção básica, ou seja, na porta de entrada dos casos da Covid-19.
Até o momento, e a despeito das pressões do Executivo federal, o Judiciário e o Legislativo têm aprovado uma série de medidas que flexibilizam os limites dos gastos com saúde da esfera local, promovem compensação pela perda de arrecadação, pagam auxílio emergencial para os mais pobres, o que impacta positivamente a arrecadação municipal, e reconhecem a competência de estados e municípios para decidir sobre as providências normativas e administrativas do combate ao Covid-19.
E o day after?
Se antes da pandemia havia ameaças à provisão e financiamento de políticas sociais universais pelos municípios, essas ameaças, se ainda estão na agenda do atual governo federal, não se materializaram. No entanto, a sustentação do nosso modelo de provisão de políticas sociais universais depende de inúmeras variáveis, que vão desde o contexto global e doméstico até a construção de coalizões de defesa.
E mais, se acreditamos que as instituições importam, o nosso modelo é regido por regras claras e universais e, a despeito de problemas de subfinanciamento e de qualidade, os prefeitos contam com legitimidade reconhecida em pesquisas de opinião. Antes da pandemia, um survey mostrou que os entrevistados os consideravam como o segundo mais importante ator político na tomada de decisões, superado pelo Presidente e à frente dos governadores. Pesquisas de opinião após a chegada da pandemia mostram que a grande maioria aprova o desempenho dos prefeitos. Com a proximidade das eleições municipais, essa aprovação pode ser um fator determinante para as suas reeleições. No entanto, essa proximidade também está incentivando os prefeitos a atenderem às pressões do mundo dos negócios e dos mais pobres para flexibilizarem as regras de isolamento social.
Se os argumentos acima são verdadeiros, não existe razão para temer a retirada dos governos locais do papel de provedores de serviços sociais universais e do seu modelo de financiamento, embora a luta pela sua manutenção possa ser mais acirrada se coalizões políticas neoliberais continuarem ganhando espaço no jogo político-eleitoral nacional. No entanto, previsões sobre o papel dos municípios no day after da pandemia são cercadas de incertezas e poucos analistas arriscam desenhar um cenário. Por isso, o máximo que podemos fazer é apresentar evidências sobre a importância da continuação dos compromissos com políticas sociais universais e consolidar coalizões de apoio e de defesa do nosso modelo.
1 Afonso, José Roberto e Castro, Kleber Pacheco de. (2020). Carga tributária bruta de 2019: recorde histórico e evidências federativas. Disponível em: https://www.joserobertoafonso.com.br/carga-tributaria-recorde-historico-afonso-castro/
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