Ludmila Ribeiro

Na última década, as campanhas eleitorais têm debatido o papel do município na segurança pública. Se, nos anos 1990, a discussão girava em torno de se as cidades poderiam atuar na prevenção e repressão ao crime, hoje a controvérsia se concentra na possibilidade de a prefeitura ampliar sua atuação nessa pauta para além das Guardas Municipais. Para melhor compreender essa questão, este texto está dividido em três seções. Na primeira, analiso como o debate sobre a participação municipal na segurança pública foi impulsionado pelo governo federal e como ele se apresenta atualmente, com base nos dados da Pesquisa de Informações Municipais (MUNIC) do IBGE, que em 2023 incluiu um bloco específico sobre segurança pública. Na segunda, discuto as particularidades da Guarda Municipal e as razões pelas quais ela se tornou o foco das discussões na última década. Por fim, na terceira seção, retomo a questão central, destacando os riscos de restringir a segurança municipal à atuação das Guardas Municipais, especialmente quando essas reproduzem o modelo das Polícias Militares.
1. O município na segurança pública: resultado da indução federal?
Até os anos 1990, a segurança pública no Brasil era responsabilidade dos governos estaduais, com pouca participação federal ou municipal, focando no uso da força letal para combater o crime, conforme a interpretação do artigo 144 da Constituição Federal. A partir dos anos 2000, com o aumento das taxas de criminalidade, iniciou-se a incorporação de políticas de prevenção. O I Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP), de 2000, introduziu o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), que permitia recursos federais para a melhoria técnica das Polícias e para a criação de estruturas municipais focadas na prevenção.
O FNSP marcou o início da responsabilização progressiva dos municípios na segurança pública, dado o incremento nos valores repassados a este ente por meio de convênios para a condução da política. Tal estratégia é potencializada pelo Programa Nacional de Segurança com Cidadania (PRONASCI), transformado em lei em 2007. Esse projeto almejava envolver a população e os territórios, dando autonomia aos municípios para a condução da política, desde que ancorada na participação social.
Em 2018, o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSPDS, Lei nº 13.675/2018) criou o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), integrando as forças de segurança em nível federal, estadual e municipal, estabelecendo uma política coordenada de segurança pública. Estruturado em ciclos bienais, enfatizou a prevenção e a redução da criminalidade, especialmente, em âmbito municipal. Sua revisão em 2021 contou com 1.400 contribuições de diversos setores, reforçando a participação social e enfatizou a colaboração entre diferentes esferas de governo.
Em 2023, o PRONASCI II foi lançado, com eixos prioritários como a prevenção da violência contra mulheres, políticas para territórios vulneráveis, apoio a vítimas da criminalidade e combate ao racismo estrutural. Tal programa visa implementar as metas do PNSPDS, reforçando a atuação dos municípios na segurança pública, consolidando que a atuação das cidades deve se dar em torno de uma abordagem preventiva, integrada e focada em áreas e populações de risco. Boa parte desses documentos entende que a condução de uma política municipal de segurança pública demanda um modelo de administração que vá além da simples presença de agentes das Guardas Municipais, incorporando mecanismos que facilitem a gestão do tema propriamente dito. Para tanto, faz indispensável a criação de uma secretaria, um conselho e um fundo municipal de segurança pública, entre outros mecanismos.
Os dados da MUNIC/IBGE de 2023 revelam que o cenário atual de participação do município na segurança pública está aquém do previsto pelas ações de indução do governo federal. De um total de 5.570 municípios, apenas 1/3 abraçaram a temática a ponto de constituir alguma estrutura dedicada à segurança pública. Dentre os municípios com estrutura, a maioria (555) conta com uma secretaria municipal exclusiva para a segurança pública, enquanto outros 393 têm um setor subordinado diretamente à chefia do executivo. Menor número de municípios (315) compartilha essa função com outras políticas públicas, e apenas 435 municípios mantêm um setor subordinado a outra secretaria ou órgão da administração indireta. Já com relação ao financiamento e planejamento da segurança pública, o quadro se mostra ainda mais desolador. Apenas 570 municípios (cerca de 10%) possuem um Fundo Municipal de Segurança Pública, e 503 têm um Plano Municipal de Segurança Pública, em que pese todos os esforços do PRONASCI em envolver essas esferas em ações mais concretas relacionadas à segurança pública.
Os municípios que possuem alguma estrutura relacionada à segurança pública podem ser considerados como grandes cidades (com população acima de 100.000 habitantes) e estão situados nos estados do Sul e Sudeste do Brasil. Ou seja, a capacidade de gestão e a implementação de políticas de segurança pública são extremamente desiguais entre os municípios, refletindo, provavelmente, a sua capacidade de acessar as ações de indução empreendidas pelo governo federal, o que justifica porque os maiores desafios (em termos de elevada taxa de crime e baixa capacidade estatal) são colocados para os municípios médios e das regiões Norte e Nordeste.
2. A Guarda Municipal: a polícia das cidades?
Como destacado anteriormente, boa parte do debate sobre o que poderia ser realizado na segurança pública esteve durante várias décadas restrito à ação policial, com destaque para as atividades repressivas realizadas pelo braço armado do Estado. Não à toa, quando o Governo Federal começa a induzir as políticas municipais na seara da segurança pública, a discussão sobre a necessidade de criação de uma polícia municipal, para dar conta desta temática, emerge com toda força.
A Constituição de 1988, em seu artigo 144, previu a criação das Guardas Municipais, que surgem como uma força estatal em um contexto de desconfiança nas polícias tradicionais, sendo que o termo "Guarda Civil" busca afastar a ideia militar, aproximando a segurança pública da população. Inicialmente, a instituição foi encarregada de proteger bens públicos, mas ao longo do tempo passou a colaborar mais amplamente na segurança pública, com foco na prevenção à violência. A presença local dos agentes fortaleceu a confiança da população, favorecendo o diálogo e a construção de uma segurança mais democrática.
Já no começo dos anos 2000, a expansão das Guardas também foi impulsionada pelos Planos Nacionais de Segurança Pública, com a condição de que os municípios implementassem planos com ações e metas, além de programas de formação voltados para as guardas ampliando suas funções para policiamento comunitário e mediação de conflitos. Contudo, nem sempre o que está prescrito corresponde ao que é realizado na “vida como ela é”. Observamos assim a multiplicação de mini-polícias-militares em âmbito municipal, a partir de um processo bastante curioso. Em regra, policiais militares aposentados eram convidados pelos municípios para a constituição, treinamento e direção das Guardas Municipais (GMs). Com isso, toda a estruturação e funcionamento das GMs passa a ser uma espécie de espelho imperfeito das PMs e, para completar essa deformação, boa parte dos concursos municipais criados nos anos 2000 favorecia os indivíduos do sexo masculino recém saídos da formação militar decorrente do alistamento obrigatório. Cria-se, então, na virada de 2010 um primeiro embate entre criadores e criaturas, haja vista que os guardas concursados gostariam de ascender à direção da instituição e, como essa era comandada por policiais militares reformados, era necessário afastá-los.
No bojo dessa disputa, em 2014, tem-se a promulgação da Lei nº 13.022 que estabeleceu o Estatuto Geral das Guardas Municipais. Se, por um lado, o Estatuto restringiu o comando da instituição e o seu treinamento aos guardas de carreira e ampliou as suas atribuições para além da preservação do patrimônio público, por outro lado, a legislação não uniformizou as práticas, mantendo indefinições sobre a identidade e o papel das Guardas, que continuam divididas entre uma abordagem cidadã e um caráter repressivo. Atualmente, as Guardas Municipais têm atuado de forma integrada com outras forças de segurança sob o discurso de que sua ação ajuda a reduzir a violência, em que pese serem cada vez mais notórios problemas semelhantes aos vivenciados pelas Polícias Militares.
Na tentativa de reduzir conflitos com as polícias estaduais e, ainda, reconhecer o papel preventivo das Guardas Municipais, essa instituição foi incluída no Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) em 2018, o que deveria reverberar em planos municipais com direcionamentos mais evidentes acerca do seu papel complementar e não em oposição às demais forças de segurança. Mas o que as Guardas Municipais desejam é ser a polícia municipal. Quanto a isso, algo estaria consolidado na decisão do STF, em 2023, que as reconheceu como força policial. Dado que o discurso político mais à direita cada vez mais transforma a violência urbana em um problema de força policial armada e letal, as Guardas Municipais se transformam na principal estratégia à disposição dos municípios para o enfrentamento do crime.
Os dados da MUNIC/IBGE de 2023 indicam que, atualmente, 23% dos municípios brasileiros contam com Guarda Municipal, sendo que as cidades com até 5.000 habitantes têm a menor presença de GMs (3,3% do total), enquanto aquelas com mais de 500.000 habitantes, embora representem apenas 0,7% do total de municípios, concentram 31% das GMs. O Nordeste concentra a maior quantidade de municípios com GM (694), seguido pelas regiões Sudeste e Sul, com 400 e 92 municípios, respectivamente. Além disso, observa-se enorme disparidade no uso de armamentos, com a maior parte dos municípios da Região Norte optando por armamentos não letais (40) ou combinados (9), enquanto nas regiões mais populosas, como o Sudeste, é mais comum o uso exclusivo de armas de fogo.
Ao comparar os números das Guardas Municipais com as estruturas municipais de segurança pública, como as secretarias, planos e fundos municipais, percebe-se uma relação de dependência entre esses fatores. Municípios com maior efetivo de GMs tendem a dispor de secretarias de segurança e planos municipais mais estruturados, sendo que 60% dos municípios com mais de 50.000 habitantes possuem esses três recursos. Assim, temos um movimento que parece ser o revés da política inicialmente induzida pelo governo federal: primeiro se constitui e arma as Guardas Municipais, institucionalizando um modelo mais repressivo de segurança pública em âmbito municipal, para mais tarde iniciar o processo de reforma dessa organização, tornando-a mais preventiva e articulada com as outras pastas municipais, como saúde, educação e assistência. Não à toa, nas eleições presidenciais de 2018, há uma preferência municipal por medidas preventivas, especialmente em áreas mais violentas, contrastando com a postura geralmente repressiva dos candidatos.
3. Quais são os riscos de restringir a segurança municipal à Guarda Municipal?
O Brasil ostenta hoje uma das primeiras posições em termos de taxas de violência de estado, isto é, quantidade de mortes perpetradas pelas mãos da polícia. Restringir segurança pública municipal à Guarda Municipal, cada vez mais constituída como imagem e semelhança da Polícia Militar, significa reproduzir os vícios que vivenciamos em nível estadual. Assim, para sair dessa espécie de dilema, é preciso, por um lado, diferenciar o papel da Guarda Municipal daquele desempenhado pelas organizações policiais, tornando-a mais próxima da população e capaz de resolver problemas que podem desaguar em crime. Além disso, é preciso deixar evidente que a GM é uma entre as diversas entidades municipais que desempenha um papel ativo na evitação de dinâmicas de violência.
Para tanto, a prefeitura deve constituir um Plano Municipal de Segurança Pública, que privilegie uma atuação primordialmente preventiva e complementar, integrada entre as diferentes secretarias de governo, de natureza multidisciplinar e baseada em evidências. Para alcançar esse marco, é indispensável que os municípios sejam capazes de constituir diagnósticos que congreguem distintos registros administrativos, para além da quantidade de Boletins de Ocorrência registrados pela GM ou pelas polícias, construindo indicadores para as ações a serem implementadas e, ainda, estabelecendo metas a serem alcançadas. Por fim, cabe ao município criar um comitê de monitoramento e avaliação das ações, especialmente as de prevenção, para que a segurança pública não seja colonizada por policiais aposentados que buscam uma nova colocação nas prefeituras.
Ludmila Ribeiro é professora no Departamento de Sociologia (DSO) e pesquisadora no Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP), ambos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
E-mail para contato: lmlr@ufmg.br – www.crisp.ufmg.br
Comments