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NEPOL UFJF

Mobilização territorial e digital na cidade de São Paulo

Telma Hoyler



Sentado na cadeira da Talentos barbearia, Wellington fazia a manutenção semanal do seu corte Degradê no mesmo momento em que eu circulava pelo bairro Vera Cruz, localizado no extremo da zona sul de São Paulo, região conhecida como Fundão do M’Boi Mirim. Embora dessa vez estivesse procurando interações para o filme documentário que eu dirigia, não era a primeira vez que acompanhava as eleições municipais nas franjas da cidade, o que fiz também em 2020 como doutoranda em Ciência Política. De algum modo, contudo, o momento parecia inaugural. 


Era uma terça-feira de sol escaldante, dia de folga de Wellington como garçom no restaurante Fahrenheit, localizado no Shopping JK, um dos mais elitizados complexos de consumo de luxo da cidade de São Paulo. “Agora que eu saí da cozinha, preciso ficar sempre apresentável pros fregueses. O corte faz sucesso”, Wellington me diz. Eu perguntei por causos como garçom. “Lidando com tanta gente, você deve ter boas histórias pra contar”. “Vixe, é o que mais tem.” Ele compartilhou com orgulho a lembrança de um cliente gente fina, que o reconheceu e cumprimentou na arquibancada do Itaquerão durante o jogo do Corinthians. “Mas e cliente arrogante, tem?”, perguntei algo assim. “Isso aí o que mais tem, mas nem ligo, eu procuro sempre fazer o meu, manter a positividade, estou aprendendo muito lá”


Welligton tem apenas 26 anos de idade e já teve vários trampos, mas há dois, sente que se estabeleceu no restaurante e que sua vida está prosperando. Conseguiu reformar sua casa no alto do morro vizinho à barbearia, ajuda sua família como pode e se orgulha de ter dinheiro investido no Tesouro Nacional e em um CDB. Se ressente apenas de não conseguir jogar futebol todo sábado com os amigos e de conseguir socializar pouco nos bares e festas da região por falta de tempo.  Um dia de folga acaba sendo pouco em sua jornada semanal “6 x 1”. Embora a entrada no serviço oficialmente comece às 11h e termine às 20h, depois que o restaurante fecha, começa a limpeza e organização do estabelecimento para o dia seguinte e uma longa jornada de ônibus pra casa. Ao todo, são quase quatro horas de transporte público diários e sobra pouco tempo para resolver outros corres. Aquele era um dia desses, mas ele se animou, apesar da timidez, em ter alguém por perto querendo ouvir sua história. Embora estivesse sem expectativa ou julgamento, as situações narradas por ele me remetiam, inevitavelmente à assuntos relacionados às pesquisas sobre espoliação urbana e desigualdades sociais. O ambiente ao nosso redor, embora “tenha melhorado muito”, ainda apresentava problemas que me remetiam às descrições que ouvia sobre a periferia de São Paulo na década de 1980, momento em que o Partido dos Trabalhadores começava a organizar a luta


O corte degradê chegava ao fim e, em meio a essa divagação interna, resolvi perguntar se ele sabia em quem ia votar para prefeito. “”. De tão segura, a resposta parecia romper uma barreira no ar. Como um vórtice, me deslocou. 


“Em quem?” “No Marçal” “Por quê?” “Porque o método dele funciona. Antes eu achava que fazer investimento era coisa de rico, mas se você para todos os dias pra ler um pouquinho, vinte minutos, vai acostumando, você adquire conhecimento. É preciso buscar conhecer. E ele mostra isso pra gente, que dá pra chegar lá”. “Lá onde?” “Ter minhas coisas, minha casa, uma vida organizada, entendeu?” “Você já conhecia ele antes?” “Já... Você não?” “Não...” falei quase com vergonha. “Ele é famoso, influencer”. “Que tipo de vídeo dele você gosta?” “Eu vejo mesmo são os sobre investimento, como ser empreendedor, essas coisas”.


Sentado na cadeira do barbeiro, Wellington tira seu celular debaixo do avental acinzentado e começa a rolar a tela em busca do tipo de vídeo que mais o inspira. O vídeo escolhido estava dividido ao meio. Na parte de cima, alguns cálculos rápidos falavam em números, porcentagens, tipos de investimentos. Simultaneamente, a parte de baixo do vídeo mostrava casas luxuosas, quintal com piscina, viagens, bens de luxo. Tudo muito rápido, editado com cortes secos e em sequência frenética. “Eu gosto muito de ler. Aprendi com ele”.


“E pra vereador?”, continuei. “Pra vereador eu sou Geraldo da Bancada Periférica. Nosso vizinho, aqui da rua. Já fez muito pela comunidade, está sempre cobrando, indo atrás das melhorias pra nossa população, entendeu? Eu sou novo, não acompanhei tudo que ele fez, mas o Wesley sempre me conta. Eu vou votar nele”. 


Wesley é o barbeiro da Talentos e com orgulho começa a falar do Geraldo. Este explica que “não é a favor do PT”, partido ao qual Geraldo é filiado e, como pastor, função que acumula com a de barbeiro, apoia Bolsonaro. Em uma conversa que tivemos dias antes, ele falava do receio do PT fechar as igrejas, adicionando que “o Geraldo é uma pessoa do povo, sempre preocupado em ajudar o próximo.” A Talentos barbearia não negava o apoio ao candidato, exibindo uma grande bandeira na entrada. 


Ao fim do corte degradê, pedi para acompanhar Wellington até sua casa. A casa mais alta do morro é a sua, impecavelmente limpa e organizada. Reparei na textura criativa, na cozinha aberta para a sala, nos livros, nas canecas do Corinthians. Em cima da mesa de apoio da sala e junto ao livro sobre como investir, brilhava uma medalha. “Foi da gincana que eu participei”. Mais alguns passos e estávamos na lavanderia, um espaço generoso, com uma grande janela aberta, de onde se avistava o CEU (Centro de Educação Unificado). Wellington conta que foi lá onde estudou. “Escola muito boa, tem gincana, aula disso, daquilo. Foi lá que ganhei essa medalha” Não resisti em perguntar “Você sabe que o CEU foi uma política da Marta, vice do Boulos, né?” “Sei sim.” Novamente o silêncio rompeu o espaço que compartilhávamos.


Não é novo o fenômeno de celebridades se candidatarem a postos políticos, mas redes sociais modificam a velocidade e dinâmica da comunicação, e os processos de identificação de eleitores com políticos, agora também influenciadores digitais. Concomitantemente, pesquisas recentes apontam que, junto a essa tendência mais ampla — e muitas vezes conectadas a elas —, a dimensão territorial segue sendo de grande importância para a mobilização política de potenciais eleitores.


O debate acadêmico, contudo, tem pouco tratado do assunto, em grande medida saltando das discussões sobre distritalização informal e clientelismo que informaram o debate nos anos 1990 e 2000 para a influência das redes sociais no funcionamento da representação política. O aparente alinhamento do debate com a dimensão e emergência que o assunto assumiu na sociedade, contudo, não permite ver que concomitantemente a essa dinâmica, existe intensa ação e organização territorial de políticos e seus mobilizadores. 


A pesquisa etnográfica que realizei no meu doutorado com vereadores e seus mobilizadores políticos mostrou que o vínculo eleitoral se dá de maneira importante por meio da operação de mandatos em territórios. Mandato é uma categoria nativa que se imbrica com o gabinete parlamentar, do qual se nutre em termos de recursos, mas não se confunde com ele. Refere-se à cadeia de intermediações que opera conectando múltiplos atores no tempo e no espaço com o objetivo de formar e ampliar constituency. Mandatos operam conectando múltiplos atores no tempo porque o período da legislatura estabelecido pelo voto é uma referência central de organização dessa estrutura. O período de um mandato e o da legislatura, em geral, se sobrepõem em função da dinâmica de entrada e saída de pessoas que o momento eleitoral traz, ainda que não esteja incorreto falar em um mandato que tenha duração superior a um período de quatro anos (no caso de manter-se o agrupamento de pessoas após a reeleição). Operam conectando atores no espaço porque pessoas que compõem o mandato o fazem construindo vínculos (afetivos, profissionais, de amizade, solidariedade etc.) com outras a partir de uma lógica de proximidade espacial. Tais relações podem até mesmo se verticalizar formando entre deputados e vereadores “um único mandato”. 


O candidato Geraldo da Bancada Periférica é exemplar nesse sentido. Quando o conheci, ele era assessor do então vereador Donato que, eleito deputado estadual em 2022, alavancou, no interior de seu grupo político, a candidatura de Geraldo. Se eleito, passarão a formar um “único mandato” também com o deputado federal Zarattini, com quem Donato partilha a vida política há muitos anos. Formar um único mandato, significa, entre outras coisas, partilhar os territórios e mobilizadores políticos. Quando se fala em nome de um, menciona-se também os demais. Quando existe um problema a ser resolvido em determinada localidade, se a emenda parlamentar e os acessos de vereador não resolverem, conta-se com emendas de outros níveis federativos. Nesse formato, os três partilham os créditos e os custos. Se é verdade que esse alinhamento vertical duradouro é raro, também é verdade que esse é “o sonho” de muitos políticos, como tantas vezes ouvi. O deputado estadual Donato e o federal Zarattini estavam presentes em muitas das reuniões políticas organizadas por Geraldo e outros membros da Bancada Periférica, emprestando a ele credibilidade. Partilharam também a estrutura de pessoas para fazer mobilização política. Nessa eleição em curso, acompanhei, por exemplo, panfletagens, reuniões e a distribuição de santinhos no comércio dos bairros em que estavam presentes membros ligados aos três políticos, muitas vezes um apresentando pela primeira vez o bairro e seus conhecidos aos outros. Nos eventos mais importantes, que reuniram maior número de pessoas, também esteve presente a candidata a vice-prefeita Marta Suplicy e Guilherme Boulos, para quem as equipes também fazem campanha.


O mandato oferece, portanto, chaves explicativas para entender como acontece uma parte importante da conexão entre sociedade e políticos eleitos e ajuda a entender a relação entre arenas legislativa e territorial; entre diferentes territórios eleitorais de um mesmo vereador; e entre níveis federativos. 

A decisão de Wellington, contudo, nos coloca a pergunta sobre as diferentes formas de construção do vínculo de representação. Para vereador, ele vota em um candidato do PT “que já fez muito pelo bairro”. Embora não o conheça, confia na indicação de Wesley, seu amigo e barbeiro, mas não confia na indicação para prefeito do próprio candidato. Segue uma lógica própria em que a coerência está no que ele consegue observar que o candidato fez ou fará pelo seu entorno. O candidato a prefeito Pablo Marçal é quem o guia na dura jornada diária, em quem encontra conhecimento para prosperar individualmente e um modelo do que almejar se tornar. No candidato a vereador Geraldo da Bancada Periférica, encontra alguém que luta a sua luta diária, em quem confia porque observa ou ouve falar sobre seu esforço. 


Embora candidatos a vereadores também ativamente façam campanha para prefeitos, a construção do vínculo de representação que se dá nos territórios (baseado na confiança e proximidade) não tem transferência automática para cargos majoritários como o de prefeito. Nesses casos, nessas eleições observo que a construção da imagem do prefeito em redes sociais parece ser mais relevante e, de modo análogo, o apoio a candidatos de seu partido ou coligados não acontece mecanicamente.


Escolhas como a de Wellington, que de certo modo compatibilizam a opção pelo empreendedorismo individualista e meritocrático com a noção de políticas públicas como direitos universais nos colocam perguntas sobre como avançar na construção de vínculos de identificação que passem pela noção de cidadania e construção de direitos universais. E com sorte, se reaprendermos a escutar, nos ensinarão a reformular velhas perguntas.


 

Telma Hoyler é doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.

Dedica-se ao tema dos estudos urbanos e da representação política na cidade.

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