Luma Rosa Martins
É comum que, durante o período eleitoral, as discussões acerca dos obstáculos à participação das mulheres ganhem espaço na mídia, com destaque para a violência de gênero, as jornadas triplas de trabalho e o escasso apoio oferecido pelos partidos políticos às candidaturas femininas. Nas eleições municipais de 2024 observou-se um leve crescimento no número de prefeitas eleitas - de 12% para 13% do total. Em relação às vereadoras também houve um pequeno aumento: em 2024 elas representaram 18% do total de eleitas contra 16% em 2020.
No período eleitoral também vem à tona as discussões sobre em que medida a maior presença de mulheres em cargos executivos e legislativos faz diferença em termos de políticas públicas. Pois bem, neste post pretendo tratar deste tema, a partir dos resultados de minha dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF no ano de 2024 e que versou sobre a atuação de prefeitas durante o primeiro ano da pandemia de Covid-19.
Durante o combate à pandemia, a imprensa noticiou casos de mulheres em várias partes do mundo à frente do executivo nacional e subnacional que se destacaram no combate à crise. Em 2020, a Forbes, por exemplo, apontou as chefes de Estado da Islândia, Taiwan, Alemanha, Nova Zelândia, Finlândia, Islândia e Dinamarca como “exemplos de verdadeira liderança em uma crise”. Já no Brasil, em 2021, a BBC publicou um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo e da Universidade de Barcelona que apontava que o número de mortes e hospitalizações por 100 mil habitantes em cidades governadas por prefeitas foi menor do que nas cidades com prefeitos, resultando numa primeira onda da pandemia menos severa nos municípios com mulheres à frente do executivo.
Este fato pode ser considerado, em alguma medida, surpreendente considerando que, historicamente, as mulheres estiveram afastadas dos espaços de tomada de decisão e que sua relação com a política é marcada por uma série de obstáculos tanto para adentrar nos espaços representativos e de governo, quanto para permanecerem nele. Me refiro ao menor acesso de recursos para o financiamento de suas campanhas, limitação de tempo para se dedicarem a outras atividades além das relacionadas às tarefas domésticas e cuidados com crianças ou idosos, além do preconceito e discriminação.
Motivada por esse aparente paradoxo procurei investigar, “como as mulheres, que tradicionalmente enfrentam uma série de obstáculos e limitações para afirmarem sua autoridade e liderança na política institucional, atuaram no combate à pandemia, num contexto de crise e emergência que exige grande capacidade de exercício de autoridade dos governos”. Adotei como hipóteses que: (i) as prefeitas atuaram de forma rápida na implementação de medidas; e (ii) além das dificuldades impostas pela situação de emergência, elas enfrentaram obstáculos adicionais relacionados ao gênero, e, por isso, buscaram enfrentar essas dificuldades com ações que ampliaram sua liderança no contexto da pandemia.
Realizei um estudo de caso de quatro municípios mineiros que tiveram suas prefeitas reeleitas nas eleições municipais de 2020: Ibiá, no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba; Oliveira, no Oeste de Minas; Nepomuceno, no Campo das Vertentes; e Vespasiano, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Os quatro municípios são os mais populosos de um total de 14 onde as prefeitas eleitas em 2016 foram reeleitas em 2020. Optei por selecionar os mais populosos na suposição de que, nestes, os desafios no enfrentamento à pandemia seriam maiores e mais complexos. Analisei as medidas adotadas pelo Executivo e as postagens das prefeituras e das prefeitas em suas redes sociais no Facebook e Instagram, entre março de 2020 e março de 2021, primeiro ano de pandemia. As principais fontes utilizadas foram os boletins epidemiológicos, as redes sociais e documentos oficiais, como leis, decretos e resoluções. Também realizei entrevistas em profundidade com duas prefeitas que concordaram em contribuir com a pesquisa, dos municípios de Oliveira e Nepomuceno.
As quatro prefeitas foram as primeiras mulheres eleitas em seus respectivos municípios; tinham mais de 60 anos, trajetória política anterior à sua eleição em 2016, como vereadoras ou ocupando cargos de confiança; tem ensino superior completo e, com exceção da prefeita de Ibiá para a qual não foi possível obter a informação, tiveram familiares na política.
A literatura sobre gerenciamento de crises e desastres destaca a importância de uma comunicação clara e precisa com a comunidade como forma de construir uma relação de confiança e pavimentar o caminho para a adoção de medidas que, em geral, impõem custos para pessoas e grupos sociais. O estilo de comunicação das mulheres foi destacado em um estudo como um dos fatores importantes para o êxito de lideranças femininas durante a pandemia. Nos quatro municípios as prefeitas utilizaram fartamente as páginas oficiais da prefeitura no Facebook e Instagram para informar, orientar e conscientizar os moradores.
Quanto às medidas implementadas observei que o enfrentamento à pandemia se iniciou no máximo uma semana depois da declaração realizada pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março de 2020. Nos quatro municípios foram usados atos normativos e administrativos que buscavam promover ações de prevenção e proteção à saúde, economia e bem-estar e foram criados comitês para assessorar a tomada de decisões referentes à pandemia, compostos por diversas autoridades municipais.
Ampliando a liderança para a tomada de decisões impopulares
De forma geral, os comitês eram compostos por membros das secretarias municipais, Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, associação comercial, médicos ou outros profissionais da área da saúde, contendo, pelo menos, dez membros. A diversidade no perfil dos membros dos comitês combinada com a centralidade de profissionais da área da saúde me parecem evidências de que as prefeitas ouviram e buscaram o respaldo de vários grupos no processo de tomada de decisões de modo a ampliar a legitimidade e a aceitação das medidas, sem se afastarem dos parâmetros e evidências científicas. A prefeita de Oliveira demonstrou a importância do comitê e fez uso do “nós” em diferentes momentos da entrevista reforçando a ideia de trabalho coletivo e despersonalizado. A prefeita de Nepomuceno também destacou a importância do comitê e das mulheres que estavam na sua liderança.
As medidas implementadas se encaixam em sete categorias: 1) medidas administrativas; 2) de contenção, mitigação e supressão; 3) compensação econômica; 4) assistência social; 5) saúde; 6) sanitização e 7) conscientização/informação. Medidas mais rígidas foram implementadas no início da pandemia, com um relaxamento entre a primeira e a segunda onda (julho a novembro de 2020), e um novo momento de rigidez em março de 2021, já no final da segunda onda, que foi até abril de 2021. Os primeiros meses de pandemia também foram os mais intensos em relação ao fluxo de medidas emitidas. De agosto a dezembro esse número caiu, e de janeiro a março de 2021 o número continuou baixo, como pode ser visto no gráfico.
Gráfico I: Número de medidas emitidas por mês
Fonte: elaboração própria dados das prefeituras. 2024.
Os procedimentos adotados e seu timing nos quatro municípios analisados não se distanciaram do que foi observado no Brasil como um todo. Em 2020 a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC) apurou que 98,6% dos municípios brasileiros adotaram medidas de isolamento social para combater a Covid-19. O mesmo foi observado em relação ao momento de relaxamento das medidas: estas foram mais rígidas no início da pandemia, ocorrendo um relaxamento entre a primeira e segunda onda e voltaram a ser mais rígidas em março de 2021, quando os números de casos voltaram a subir.
Obstáculos de gênero
Os achados da pesquisa corroboram a primeira hipótese postulada, já que nos quatro casos as prefeitas implementaram medidas não farmacológicas nos municípios que governavam de forma rápida. A resposta à pandemia por essas prefeitas aconteceu de forma similar à de muitos outros municípios, com a emissão de decretos e diferentes categorias de medidas de enfrentamento, o que mostra que elas fizeram amplo uso de sua autonomia administrativa.
Mas, e quanto à segunda hipótese? Em que medida as prefeitas enfrentaram dificuldades e obstáculos relacionados ao gênero em seus esforços contra a pandemia de Covid-19? A prefeita de Oliveira afirmou que teve certa dificuldade no início de sua carreira, quando enfrentou alguns preconceitos machistas. Já a prefeita de Nepomuceno não mencionou nenhum episódio de discriminação ou desrespeito e afirmou que o fato de ser mulher a favoreceu durante o período da pandemia, devido ao fato de a população vê-la como uma “mãezona”. Ambas afirmaram que não tiveram sua liderança questionada durante a pandemia.
Segundo as prefeitas entrevistadas, as principais dificuldades enfrentadas naquele momento foram a falta de orientação e coordenação do governo central e a pressão por parte de alguns setores da economia. Ou seja, as mesmas dificuldades reportadas por prefeitos do sexo masculino. As duas prefeitas entrevistadas reconhecem que as mulheres enfrentam dificuldades na política, mas apenas uma delas admitiu ter sofrido os impactos das desigualdades, estereótipos e outras formas de violência de gênero. Em geral, elas tenderam a diminuir a importância dessas questões, seja em sua trajetória, seja no período da pandemia.
A prefeita de Oliveira não mencionou o fato de que, em julho de 2020, durante uma reunião da Câmara Municipal, o vereador Francisco Naves (PSD), ao comentar um requerimento para limpeza de uma rua da cidade, disse: “Então senhora prefeita, para de rebolar e vai trabalhar. Para de ser fake e vai trabalhar”. A prefeita não mencionou esse acontecimento durante a entrevista.
Diante das entrevistas, busquei algumas interpretações para o fato de as prefeitas evitarem falar dos obstáculos de gênero. Poderia ser uma possível recusa de se alinhar com questões destacadas pelos movimentos feministas tendo em vista a polarização política e as controvérsias e disputas em torno da chamada ideologia de gênero. Vale lembrar que nenhuma das duas entrevistadas pertence a partidos de esquerda comprometidos com as causas feministas. Poderia, também, ser fruto da naturalização das hierarquias e desigualdades de gênero e ausência de consciência de como elas impactam a vida e as trajetórias das mulheres. Outra chave possível de interpretação é de que o não reconhecimento dos determinantes de gênero sobre suas vidas e trajetórias políticas possa ser uma escolha mais ou menos consciente de quem prefere enfatizar suas vitórias e superações e não os obstáculos e dificuldades.
O caso da prefeita de Oliveira sugere que os obstáculos de gênero podem ser menos sentidos à medida que as mulheres avançam na carreira. Não porque eles deixam de existir, mas porque elas desenvolvem mecanismos para lidar com eles e se tornam mais resilientes. Cristine Lasmar apontou que no início de sua carreira se deparou com preconceitos machistas, pois “muitas pessoas não aceitavam ser mandadas por mulheres”. Porém, ela acredita que essas dificuldades já foram superadas.
A prefeita de Nepomuceno reconhece que a política é “muito masculina”, mas destaca que nunca se sentiu “rebaixada por ser mulher”. Segundo ela, ela conseguiu alcançar os espaços que ocupa hoje como prefeita e como presidente de associações devido ao seu esforço pessoal, engajamento na política e imposição. Contudo, a forma como ela afirmou ser percebida na cidade, “muito atrevida”, é um sinal claro da operação dos estereótipos de gênero. Embora ela não veja dessa forma, esta percepção da população é a forma como a sua assertividade e coragem é significada em sua comunidade, como atrevimento e desafio aos limites impostos às mulheres. A mesma forma de atuação de um prefeito homem não seria interpretada como atrevimento já que ele estaria simplesmente realizando as expectativas que se tem de uma liderança masculina.
Não se trata de levantar dúvidas sobre as afirmações das prefeitas ou questionar a sinceridade e a coerência de suas declarações. As desigualdades e hierarquias de gênero que estruturam a sociedade operam independentemente da percepção dos indivíduos, isto é, elas existem e impactam o processo político, estando as pessoas conscientes disso ou não.
Mãezona e atrevida
Johnson e Williams (2020) perceberam que durante a pandemia, houve uma tendência a valorizar características historicamente associadas às mulheres, como o cuidado e a empatia, como elementos que favoreceram a atuação de lideranças femininas. Segundo Miguel e Biroli (2014), esta tendência está sintonizada com o “pensamento maternal” ou “política do desvelo”. Busquei observar se, nos casos estudados, essas características despontaram durante o enfrentamento à pandemia, o que foi notório somente no caso da prefeita de Nepomuceno, a mesma afirmou que é considerada “muito atrevida” na cidade. Ela destacou como o fato de ser mulher a favoreceu na comunicação com a comunidade. Ao se comportar como “mãezona” ou “chorar” na televisão ela criava uma conexão e uma empatia com a população, o que teria ajudado na adesão às medidas implementadas. Nesse caso os estereótipos de gênero a favoreceram ao invés de prejudicá-la. O fato de ela se sentir à vontade para chorar diante das câmeras de TV não foi interpretado como sinal de fraqueza e vulnerabilidade, como aconteceria no caso de um prefeito, mas sim, como sinceridade, e funcionou como um sinal de alarme sobre a gravidade da situação para a comunidade. Na chave da maternidade, seu choro foi interpretado como o de uma mãe preocupada e que sofre pelos filhos e faz o que é melhor para protegê-los. Esse fato sugere um uso estratégico dos estereótipos de gênero pela prefeita no sentido já apontado em outros trabalhos como o de Panke (2016), Mendonça e Ogando (2013) e Marques (2021).
A pesquisa buscou contribuir para a compreensão da atuação de lideranças políticas à frente de situações de emergência, particularmente, lideranças femininas. Devido ao número limitado de casos, não é possível generalizar os achados para outros casos de prefeitas em exercício nos anos de 2020 e 2021, mas os insights da pesquisa podem ser úteis para outras investigações sobre a atuação das mulheres em contexto de crise e emergência. Dessa forma espera-se contribuir para futuros estudos focados na atuação de mulheres em cargos executivos que ainda não são muito numerosos no Brasil. Além disso, devido à importância que os municípios brasileiros tiveram no combate à Covid-19, o estudo também buscou contribuir para a compreensão da atuação dos governos locais em contexto de crise.
Luma Rosa Martins Silva é graduada e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Para a sua pesquisa de mestrado ela contou com apoio da CAPES.
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