Marjorie Marona¹
Em meio a uma tremenda crise de governabilidade, cujo desfecho ainda é imprevisível para Bolsonaro, sua estratégia de condução do país em face dos desafios que a pandemia de COVID-19 impõe se constrói de modo errático. Mas existe pelo menos um aspecto que tem se regularizado: a disputa com elites subnacionais de governo. O conflito federativo, que se reanima no contexto de isolamento institucional do presidente, pode ser compreendido como decorrência de uma estratégia eleitoral (e, antes, de sobrevivência) a la Bolsonaro – é dizer, rude e irresponsável politicamente.
É rude em tudo o que o significado permite: não há argúcia reconhecível. Bolsonaro ataca governadores e prefeitos em cada oportunidade que se lhe apresenta, destacados os pronunciamentos em rede nacional: o presidente criticou o fechamento de escolas e do comércio, qualificando como histéricas as medidas de enfrentamento à pandemia de COVID-19 que vinham sendo tomadas por governantes locais. Com Bolsonaro, o debate público invariavelmente ganha ares de bate-boca: tornou-se célebre a discussão com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), em que o presidente apontava motivações eleitorais nos discursos e atitudes daqueles que podem vir a ser seus adversários nas eleições presidenciais vindouras – já que ele mesmo flerta, abertamente, com a reeleição.
E aí está o indicador mais precioso de sua irresponsabilidade política: a desproporcionalidade entre as pretensões imediatas de Bolsonaro – viabilizar a reeleição – e as consequências, literalmente mortais, que podem advir de sua estratégia. É que o conflito federativo como estratégia de governo e de viabilidade eleitoral está diretamente vinculado a disputas em torno das medidas de isolamento social e restrições de mobilidade em face da pandemia de COVID-19.
Por um lado, Bolsonaro insiste em um discurso e uma postura pública que contrariam as normas da Organização Mundial da Saúde (OMS), os exemplos dos governos no mundo inteiro, e as orientações do seu próprio Ministro da Saúde. Por outro, governantes locais reagem tomando a dianteira na condução de políticas de saúde e emergência sanitária. Para que se tenha uma ideia, até meados de março, pelo menos sete estados já haviam imposto, por conta própria, medidas de isolamento social e/ou controle de divisas. Alguns municípios estabeleceram medidas no mesmo sentido e outros reagiram a medidas menos restritivas, eventualmente adotadas pelos respectivos governos estaduais.
Nestes termos foi que o conflito federativo aportou no STF: como contenda política, bem entendido. Primeiro por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6341) que questionava a constitucionalidade da Medida Provisória 926/20 que, no âmbito das ações de combate e enfrentamento dos impactos causados pela COVID-19, definia os serviços públicos e as atividades essenciais. Substancialmente, arguia-se a inconstitucionalidade da MP por usurpação de competência por parte da União em face dos entes federativos no que toca ao cuidado com a saúde e à execução de ações de vigilância sanitária e epidemiológica.
A dimensão política do conflito se evidenciava na tentativa de o governo federal, por meio de um par de instrumentos tipicamente mobilizados em cenários de unilateralismo presidencial – decreto e medida provisória -, esvaziar a autoridade dos governos locais, circunscrevendo eventuais determinações de isolamento, quarentena e restrição de locomoção que avançassem.
Embora tenha reconhecido que o debate sobre o “sistema de distribuição de competências materiais e legislativas, privativas, concorrentes e comuns, entre os três entes da Federação, tal como estabelecido pela Constituição de 1988 e tendo em vista a observância do princípio da predominância do interesse, é marcado pela complexidade” razão pela qual “não incomum chamar-se o Supremo a solucionar problemas de coordenação e sobreposição de atos legislativos, especialmente federais e estaduais”, o Ministro Marco Aurélio, relator da ADI, não recorreu à jurisprudência francamente favorável à União em casos que envolve conflito federativo.
A resposta do Supremo, que veio através da concessão liminar parcial do pedido “para tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente” dos entes para legislarem continha todos os elementos indicativos da compreensão da Corte acerca da posição que ocupa em uma estratégia de isolamento institucional do presidente da República. O efeito prático da decisão monocrática foi o de possibilitar que governadores e prefeitos seguissem editando medidas cada vez mais restritivas a despeito do discurso e atuação tresloucada do presidente da República que insiste em minimizar a extensão e gravidade da pandemia de COVID-19.
Antes, ainda, que o Supremo se manifestasse colegiadamente sobre a questão – o que deve acontecer ainda esta semana – outra decisão monocrática colocou a corte de vez no epicentro da disputa federativa. Alexandre de Moraes deferiu parcialmente pedido liminar nos autos de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 672) para reconhecer e assegurar “o exercício da competência concorrente dos governadores estaduais e distrital e suplementar dos governos municipais, cada qual no exercício de suas atribuições e no âmbito de seus respectivos territórios, para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia (…) independente de superveniência de ato federal em sentido contrário, sem prejuízo da competência geral da União para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário”.
Alexandre de Moraes asseverou que não compete ao Poder Judiciário substituir o juízo de conveniência e oportunidade realizado pelo Presidente da República no exercício de suas competências constitucionais. Afirmou, contudo, o dever do STF de exercer juízo de verificação da exatidão do exercício da discricionariedade executiva perante a constitucionalidade das medidas tomadas, observando a realidade dos fatos e também a coerência lógica da decisão com as situações concretas.
Em resumo, para o ministro, o respeito ao princípio federativo impõe que se resguarde o direito da União de adotar medidas restritivas em todo o território nacional, as quais devem ser seguidas por governadores e prefeitos. No entanto, a União não pode restringir a competência de estados e municípios para que adotem, eles próprios, políticas de isolamento social e restrição de mobilidade em razão da pandemia de COVID-19, segundo seu juízo de conveniência e oportunidade.
A seguir nesta toada, o STF poderá induzir mudança institucional de monta. Não se trata de restabelecer o pacto federativo, mas é possível que se altere significativamente a relação entre os entes da federação a partir de sua decisão. Desde 1988 – é verdade – várias foram as alterações sofridas pelo federalismo brasileiro, a despeito de mudanças formais no modelo de divisão de competências estabelecida pela Constituição. Nos últimos anos, o Congresso operou na produção de legislação ordinária que afetou estados e municípios na sua dimensão fiscal, na sua capacidade de financiamento e endividamento, tornando-os ainda mais dependentes dos repasses da União. A Lei de Responsabilidade Fiscal, do início dos anos 2000, é um marco deste processo de rearranjo federativo pela centralização na formulação de políticas públicas e reforço de caixa em benefício da União.
Diante das urgências impostas pela pandemia de COVID-19 e da crise de governabilidade que assola o Planalto os dramas do federalismo brasileiro se apresentam como questão de primeira ordem, pois é na prática da interação entre o arranjo federativo e as demais instituições que se podem estabelecer as vantagens e desvantagens do modelo. É a isto que o STF está sendo chamado a responder. E, se até aqui, a jurisprudência apontava no reforço da capacidade da União na formulação de políticas públicas como vacina contra as desigualdades regionais, o nível de desarticulação do governo Bolsonaro parece inspirar alterações de rumo.
As decisões de Marco Aurélio e Alexandre de Moraes, ainda não confirmadas em plenário – que se fará virtual, reduzindo os níveis de deliberação – tratam, sem dúvida, da séria questão da emergência sanitária e de saúde no contexto federativo. Mas também funcionam como indicadores de que o STF reconhece o papel que desempenha diante do conjunto de alterações do comportamento político e, consequentemente, do desenho institucional que o bolsonarismo tem induzido.
¹Professora do Departamento de Ciência Política da UFMG. Coordenadora do Observatório da Justiça no Brasil e na América Latina (OJB-AL/UFMG). Pesquisadora do INCT/IDDC – Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação.
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