top of page
NEPOL UFJF

Entre o jurídico e político: as disputas envolvendo o Programa Minas Consciente

Helena Delgado Malvaccini Mendes (NEPOL/UJF)1


Se é certo que as medidas de distanciamento social afirmaram-se como instrumento de combate à COVID-19, não menos certa é sua adoção remeter a uma letargia do governo federal e a um correlato protagonismo dos entes subnacionais. Com a ADI 63412 e a ADPF 6723 , relatadas, respectivamente, pelo Min. Marco Aurélio e pelo Min. Alexandre de Moraes, consagrou-se a descentralização na tomada de decisão a partir da explicitação “no campo pedagógico e na dicção do Supremo, da competência concorrente”. A partir de então, a qualquer imbróglio federativo envolvendo as políticas restritivas invocavam-se as decisões e a repartição de competências, como se, tais quais um Toque de Midas, pusessem termo a qualquer dissenso atinente à matéria.


Inicialmente, ainda que não tenham as decisões nada feito além de reafirmarem a previsão expressa da Constituição, qual seja, a sujeição da “defesa da saúde” ao regime de concorrência legislativa, sua relevância atrela-se ao próprio entendimento historicamente esposado pela Corte quando da delimitação das fronteiras de atuação legislativa entre os entes federativos: enquanto resguardadas as competências dos Estados e municípios sobre os interesses regionais e locais, respectivamente, o que se verifica é sua supressão jurisprudencial a partir da deferência concedida ao interesse geral, capitaneado pela legislação federal. Nesse sentido, diagnosticada uma sistemática constrição do espaço constitucional infranacional (MAUÉS, FEDEL, 2019)4 em razão do protagonismo outorgado à União, o próprio reconhecimento da margem de atuação estadual e municipal no gerenciamento da pandemia torna-se digno de nota.


Sobre esse afastamento da tendência de hipertrofia do interesse geral quando em pauta as medidas restritivas exigidas no combate à COVID-19 difundiram-se as múltiplas políticas de distanciamento social, muitas vezes sobrepostas, que daí seguiram em território nacional. Invocando-se a descentralização, em meio a um suspiro de alívio, quando Bolsonaro incluía dentre os serviços essenciais, ainda no início da pandemia, lotéricas, igrejas, academias e salões de beleza5 , questionável tornava-se seu potencial resolutivo quando conflitantes as diretrizes emanadas dos entes subnacionais com pretensão de aplicação sobre um mesmo território.


Afinal, como derivar, da reafirmação da competência concorrente, sobre qual ente deveria repousar a tomada de decisões relativas ao fechamento de comércio, por exemplo? Mesmo reconhecendo-se a confluência de interesses na gestão da pandemia, não há, a priori, critério que determine em qual feixe de interesses, se regional ou local, melhor reside a decretação de tais medidas: dado o custo econômico e político das medidas de distanciamento social, bem como levando-se em consideração a centralidade concedida aos municípios na gestão da saúde pública, conforme lei 8.088/1990, levantam-se vozes advogando a predominância do interesse local. Contrariamente, diante da inocuidade das ações quando inexistente articulação com os municípios vizinhos, prestigia-se o interesse regional cujo guardião primeiro seriam os Estados. Esfacela-se, pois, o mito de Midas, já que, conquanto asseverada a descentralização, permaneceria em disputa o modo como essa seria processada.


No seio da imprecisão trazida pelo afastamento de uma significação imanente quanto à repartição de competências, não é de se estranhar a proliferação de contendas federativas. Tendo-se como objeto de análise o Estado de Minas Gerais, em 29 de abril foi aprovado, por meio da deliberação n° 396 , do Comitê Extraordinário COVID-19, o programa de retomada da atividade econômica. Setorizando o Estado em 14 macrorregiões, seria indicado, a partir de dados de capacidade assistencial e propagação da doença, qual dos quatro estágios de flexibilização deveria ser implementado em cada região. Ao ser a adesão ao “Minas Consciente” voluntária, sua não observância, implicaria, conforme expressamente disposto no ato normativo, na manutenção da incidência da deliberação 177. Essa, divulgada em 22 de março, impunha aos municípios, dentre outras medidas, a suspensão de atividades e serviços com potencial de aglomeração.


À pretensão estadual de coordenação regionalizada, de acordo com o risco epidemiológico de cada macrorregião, impuseram-se os pleitos municipalistas. Afastado o núcleo decisório do nível local, seria obstada a continuidade das políticas até então desenvolvidas e, consequentemente, a possibilidade de adequação mais fina às distintas realidades e demandas circunscritas municipalmente. Nesse sentido, até o dia 9 de julho, mais de dois meses após a criação do programa, dos 853 municípios mineiros apenas 194 haviam expressamente a ele aderido. Dentre os 10 municípios mais populosos do Estado, integravam o projeto apenas Juiz de Fora e Sete Lagoas.


Não é de se estranhar, portanto, que tenham os impasses chegado também ao Judiciário a partir, em larga medida, do ajuizamento de ações civis públicas, instrumentos de defesa dos direitos difusos e coletivos, pleiteando a suspensão dos dispositivos controvertidos. Se, como visto, ainda pendente de precisão o modo a partir do qual se daria a descentralização, natural seria o dissenso em primeira instância quanto à delimitação de competências: ora pendia-se para a autonomia local, ora para a necessária coordenação regional. Persistiam as oscilações, no entanto, no seio do órgão de cúpula do Judiciário estadual, qual seja, o Tribunal de Justiça, acessado, em sede recursal, por aqueles municípios cujas normas haviam sido judicialmente obstadas ou pelo Ministério Público quando não suspendidos os diplomas impugnados. À racionalidade e à univocidade atribuídas às decisões judiciais contrapunha-se a contingência.


A título ilustrativo, impondo-se a obrigação de consistência em relação a todas as disposições estaduais no tocante à COVID-19, foi deferida tutela de urgência para suspender, em Sete Lagoas, as normas instituidoras da retomada das atividades comerciais e da prestação de serviços.8 Na data em que deferida a antecipação de tutela, 3 de junho, havia confirmação de 35 casos.9 Em 29 de maio, por seu turno, havia sido deferido o pedido formulado pelo município de Coronel Fabriciano de concessão do efeito suspensivo da decisão agravada, qual seja, a que obstava dispositivos de flexibilização dados pelo decreto 7.220, de 29 de abril.10 Reconhecia-se, para fins de legitimação das medidas, a competência do prefeito para regular a respeito do funcionamento do comércio. Conforme boletim epidemiológico, Coronel Fabriciano, no dia em que proferida a decisão, contava com 75 casos confirmados, além de ter tido, nas 24 horas anteriores, maior número até então registrado de novas confirmações.11


Nesse sentido, esmorecem as tentativas que, buscando critérios explicativos, invocam uma possível correlação entre as decisões e as situações pandêmicas vivenciadas: ainda que o número de casos confirmados reflita também fatores externos à propagação da doença, como a capacidade de testagem de cada município, de acordo com os dados oficiais disponíveis ao Judiciário, a prevalência relativa (em relação à população), de COVID-19 em Coronel Fabriciano era cerca de 4 vezes superior à de Sete Lagoas.


Atestada a insegurança jurídica no tratamento da matéria, o Procurador-Geral de Justiça ajuizou Ação Declaratória de Constitucionalidade cujos objetos seriam a já mencionada deliberação 17 e a lei 13.317/1999, que instituiu o Código de Saúde do Estado de Minas Gerais, e cujo parâmetro seria a Constituição estadual. Enquanto aquela, como visto, impõe medidas restritivas a serem observadas pelos municípios durante a pandemia, essa, dispondo sobre a gestão de saúde, impõe à direção estadual a coordenação e execução das atividades de vigilância epidemiológica.


A ação, utilizada quando presente controvérsia jurisprudencial acerca da constitucionalidade de determinado dispositivo, objetiva, a partir da ratificação de sua legitimidade, tornar exigível sua observância não só pelos órgãos do Poder Judiciário, como também pela Administração Pública. Logo, a partir da decisão, dotada de eficácia erga omnes e efeito vinculante, não caberiam mais aos magistrados, alegando inconstitucionalidade, afastar a incidência do diploma então controvertido, bem como não caberia ao poder público comportar-se contrariamente ao seu conteúdo.


No dia 9 de julho, deferiu-se, monocraticamente, pela desembargadora Márcia Milanez, relatora da ação, o pedido liminar, reconhecendo-se o caráter cogente e vinculante dos dispositivos em questão, bem como determinando-se a suspensão da eficácia das decisões que tenham afastado sua aplicabilidade.12 Atrelada à cogência da deliberação 17, como asseverado pela relatora, sua incidência seria excepcionada tão somente quando da adesão ao programa Minas Consciente, ressalva feita pelo próprio ato normativo instituidor do programa. Para além do arcabouço normativo estadual, remanesceria aos municípios apenas a faculdade de agregar novas restrições.


Em termos jurídicos, no entanto, não são cristalinas as implicações da decisão: cabendo aos Tribunais de Justiça o controle de constitucionalidade face às respectivas constituições estaduais, a determinada suspensão só se estenderia àquelas decisões que tenham negado a aplicação aos dispositivos questionados em razão de eventual incompatibilidade com o diploma constitucional mineiro. No entanto, ao remeter a controvérsia diretamente à delimitação de competências e ao modelo de federalismo adotado, certo é sua discussão se dar sobre o amparo da Constituição Federal, restringindo-se a amplitude dos efeitos da sentença.


Instaurou-se, assim, controvérsia quanto à própria amplitude da liminar, na medida em que, enquanto o Ministério Público, vocalizado pelo próprio governo estadual, divulgava ter sido determinado o cumprimento do isolamento social por todos os municípios mineiros que não se conformassem com o Minas Consciente, a Associação Mineira de Municípios, alinhada à autonomia local, prontamente lançou nota afirmando não ter havido mudança substancial no quadro de enfrentamento à COVID-1913 Invocando o federalismo em três níveis autônomos e independentes, a AMM reafirmou a competência municipal quanto à regulamentação do isolamento social.14


Da incerteza quanto aos impactos jurídicos da cautelar, confirmada pelo órgão especial do Tribunal em 22 de julho, não se depreende, no entanto, ausência de reverberações na seara política. Em termos de adesões, conforme dados divulgados pelo Estado em 6 de agosto, 440 municípios já integravam o protocolo, perfazendo, portanto, uma cobertura superior a 50%. Até a concessão da liminar, a média diária de adesões girava em torno de 2,66, enquanto, a partir da decisão até a data de 6 de agosto, a média saltou para, aproximadamente, 8,79, o que representa um acréscimo superior a 226%.


Gráfico I: Número de municípios que aderiram ao Programa Minas Consciente (29 de abril a 06 de agosto)



Fonte: Elaboração própria, com base em dados fornecidos pela Secretaria do Estado de Saúde.


Nesse contexto, ganha relevo a negativa da capital mineira, Belo Horizonte, em integrar o programa. A partir do decreto 17.361, publicado no dia 22 de maio, instituiu-se protocolo de reabertura atrelada às diretrizes estabelecidas pelo Comitê de Enfrentamento, às recomendações do Grupo de Trabalho de Reabertura Gradual, aos indicadores epidemiológicos e à capacidade assistencial. Trilhando caminho independente seguido por alguns municípios de sua região metropolitana, não se furtou seu prefeito, Alexandre Kalil (PSD), de tecer críticas ao Minas Consciente e ao governador do Estado, Romeu Zema (NOVO).


O embate político ganhou novas proporções com a recomendação expedida pelo Ministério Público estadual, no dia 7 de agosto, para que o município aderisse ao protocolo, sob pena de judicialização da questão.15 Caso acolhidos os parâmetros estaduais, o município regrediria na abertura comercial iniciada a partir do dia 6 de agosto16 após a estabilização dos índices de transmissão e de ocupação de leitos. No dia 11, Kalil não só afastou a adesão da capital ao programa, como também expôs sua relutância em ceder ao que seriam suas inconstâncias em contraste com o embasamento científico das diretivas municipais.17


Nesse ponto emergem alguns questionamentos cujas respostas extrapolam nossas pretensões: se, na gestão da pandemia, a coordenação pode ser vista como ideal a ser atingido, questiona-se até que ponto, em prol de sua conquista, caberia a supressão de iniciativas potencialmente mais bem desenvolvidas. A esses termos converge o mais recente recuo do Ministério Público. Seja por recear uma perda de credibilidade da instituição após a negativa da capital mineira, seja por julgar adequados os apontamentos trazidos pela prefeitura, o MP solicitou ao Estado que avaliasse separadamente os indicadores do município. Assim, em seus mais recentes capítulos a controvérsia ganha novos contornos na medida em que desafiadas as pretensões do Judiciário de uniformização e regionalização.


Se a Belo Horizonte pode ser atribuído o posto de bastião da primazia pelo interesse local, seu gradativo isolamento nessa posição não deve ser interpretado enquanto natural decorrência da decisão do TJMG, sob pena de negligenciar as articulações políticas que a seguiram. No dia 14 de julho, menos de uma semana após a concessão monocrática da liminar, a AMM reuniu-se com o MP para discutir suas implicações. Na oportunidade, o presidente da associação, Julvan Lacerda, defendeu a inadequação das medidas estaduais sobretudo em relação aos pequenos municípios.18 Editada, no dia seguinte, a deliberação n° 67 do Comitê Extraordinário, a AMM ganhou assento nas instâncias decisórias e executórias estaduais no tocante à pandemia.19 O documento também inaugurou consulta pública sobre o Minas Consciente de modo que pudesse ser aprimorado e revisado.


A partir de então, sobre a promessa de que uma série de mudanças seriam efetivamente implementadas alicerçava-se o aumento no número de adesões ao protocolo. Divulgadas no dia 29, as alterações reduziram os quatro estágios de reabertura até então utilizados para três, permitindo-se, a partir do segundo, a abertura de serviços não essenciais. Afinado aos pleitos relacionados aos municípios de pequeno porte, institui-se regime diferenciado para aqueles com menos de 30 mil habitantes.20 A modificação ganha ares de verdadeira reforma quando se constata a subsunção de 763 dos 853 municípios mineiros ao limite demográfico imposto, perfazendo o novo regime uma cobertura de expressivo impacto. De acordo com os novos critérios, dissociados dos índices regionalizados e condicionados tão somente ao número de casos, seria permitida a progressão imediata de fase para 362 cidades.


Igualmente expressiva foi a regionalização do Estado em 62 microrregiões para além das 14 macrorregiões cujo desempenho até então norteava a progressão de fase. Aquelas, para além de reunirem um menor número de municípios com realidades mais próximas entre si, ampliaram a margem de atuação do gestor local, já que seus índices constituem parâmetro alternativo à tomada de decisões. Na medida em que expandido o poder decisório dos prefeitos, agrega-se à primazia do interesse regional, tutelado pelo Estado, a valorização do local, razão pela qual se pode explicar o substancial aumento nas adesões ao Minas Consciente. Não estranhamente, nos dias seguintes à divulgação das modificações no programa, e não naqueles posteriores às decisões do Tribunal de Justiça, é que seu verificou o maior número diário de novos aderentes: em 30 e 31 de julho aderiram ao protocolo, respectivamente, 24 e 25 municípios.


Nessa toada, o que se tem em tela são reformas de monta no modo como gerido o enfrentamento à COVID-19 Minas Gerais. Em se afastando a tentação de atribuir univocidade à repartição de competências, o que se percebem são, justamente, os poucos consensos relativos a como deve se dar uma gestão descentralizada. Enquanto é certo que à decisão do Tribunal de Justiça pode ser atribuído relevante potencial uniformizador, não menos certo é residir nas mobilizações políticas subsequentes a alteração do quadro de combate à pandemia no Estado: de uma política estadual em muito fracassada com limitada permeabilidade frente à autonomia municipal, emergiu modelo de gestão aproximado aos pleitos municipalistas e, portanto, de maior alcance. Se os frutos colhidos dessa estratégia serão os melhores, apenas análises futuras poderão dizer.


 

Referências


1 Aluna do curso de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista de iniciação científica do Núcleo de Estudos sobre Política Local (NEPOL/UFJF).




4 MAUÉS, Antônio Moreira; FADEL, Alexandre Pinho. A repartição de competências legislativas no federalismo brasileiro: uma análise da jurisprudência do STF (2013-2017). In: BOLONHA, Carlos; LIZIERO, Leonam; SEPULVEDA, Antonio (org.). Federalismo: contemporâneos. Porto Alegre: Editora Fi, 2019, p. 35-52.












16 No dia 25 de maio iniciou-se a reabertura comercial. A partir do dia 8 de junho, o município avançou para a segunda fase da flexibilização. No entanto, a partir de 29 de junho houve recuo para a fase de controle, permitindo o funcionamento de poucos setores. Nova flexibilização só viria em 6 de agosto, no mesmo momento em que foi expedida a recomendação pelo Ministério Público para alinhamento ao Minas Consciente.






Posts recentes

Ver tudo

Kommentare


bottom of page