Ana Clara Candido Costa
“O Brasil, com sua localização tropical, é um dos países que vão ser mais afetados pelas mudanças climáticas, e a gente tem que preparar nossa sociedade para isso”. Quem diz isso é Paulo Artaxo, cientista brasileiro que se reuniu recentemente com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em uma reunião de emergência para discutir o enfrentamento da crise climática no Brasil. Essa vulnerabilidade se reflete especialmente na produção agrícola e pecuária, que é extremamente sensível às variações climáticas. Nesse sentido, a regra é clara: as chuvas mais intensas e de curta duração, e o aumento na frequência de secas e queimadas, entre outras variações climáticas, abalam todo o sistema agroalimentar, como a disponibilidade de água e a queda na produção de alimentos. Consequentemente, as condições de sobrevivência humana são impactadas de diversas formas, como intensificação da insegurança alimentar e hídrica.
Para entender a crise climática, é fundamental levar em conta o impacto da intervenção humana nos ecossistemas e nas cidades, ou seja, as mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global não ocorrem isoladamente, elas são agravadas por atividades antropogênicas que degradam o meio ambiente, como o desmatamento, o uso de combustíveis fósseis, as queimadas, a exploração de recursos minerais e a expansão desordenada das áreas urbanas. Para termos chegado na situação de colapso ambiental em que nos encontramos, os diversos avisos sobre as consequências de tais atividades tiveram que ser sistematicamente ignorados. Estas atividades estão alinhadas com projetos de “desenvolvimento” organizados em torno do agronegócio e favorecem a manutenção de uma pequena elite que se beneficia com a destruição da biodiversidade para a produção de gado e de ração para o gado, comprometendo a produção de comida para a manutenção da vida humana.
Diante da imutabilidade das leis da natureza, que já nos deixaram bem claro que os recursos não são inesgotáveis, e do agravamento das desigualdades sociais preexistentes (racial, social e de gênero), há algumas décadas alguns países realizam cúpulas e se reúnem para firmar acordos internacionais para discutir sobre meio ambiente, adaptações e determinar metas para mitigar impactos, tais como a Conferência de Estocolmo (1972), o Protocolo de Kyoto (1997), a Eco-92 (1992), o Rio+20 (2012) e o Acordo de Paris (2015).
Com discursos eloquentes e cheios de boas intenções, líderes globais elaboram compromissos para reduzir emissões de gases do efeito estufa, defendem a beleza da biodiversidade e traçam objetivos para combater as desigualdades, mas “na hora do vamos ver”... Um exemplo bem fresco disso é o discurso de Lula na abertura da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, na última semana de setembro. Em sua fala, o presidente destacou a urgência da crise climática, repreendeu a falta de comprometimento efetivo dos países em cumprir acordos e criticou o fato de que o auxílio financeiro prometido aos países pobres, que são mais vulneráveis às mudanças climáticas, não tem sido entregue como deveria. Porém, na mesma semana teve uma reunião, fora da agenda, com uma grande empresa petrolífera, a Shell. Segundo apurações, a empresa apresentou ao presidente brasileiro um estudo sobre “transição energética”, que, paradoxalmente, prevê a expansão da exploração de petróleo e gás na próxima década.
A adesão do Brasil a tratados se comprometendo a implementar medidas mitigadoras, como a conservação de ecossistemas e a mudança na produção de alimentos, apesar da sua relevância, passa a impressão equivocada de que o Poder Executivo Nacional é o único que possui as ferramentas para colocá-las em prática. Entender as possibilidades e os limites de ação dos governos subnacionais (estaduais, municipais e metropolitanos) é fundamental para aprofundar o debate técnico e político necessário ao avanço da agenda climática. Nesse sentido, em tempos de eleições municipais, somos constantemente lembrados das atribuições dos poderes executivo e legislativo locais e discussões sobre o papel dos municípios em temas como crise climática e a fome recebem mais visibilidade.
O que pode ser feito, então, no âmbito municipal? Neste ano, foram divulgadas uma diversidade de cartilhas orientando os candidatos e candidatas a inserirem propostas relacionadas à adaptação climática e à garantia da segurança alimentar e nutricional. Da mesma forma os eleitores e eleitoras tem sido alertadas a fazerem as suas escolhas baseadas nesses compromissos inadiáveis.
Algumas cartilhas que merecem ser consultadas são “Como as cidades podem alimentar o futuro” (Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável), “Como acabar com a fome no seu município” (Instituto Fome Zero), “Como integrar a agenda da alimentação saudável, justa e sustentável às propostas de governo nas eleições municipais” (Instituto Comida do Amanhã), “Adaptação Climática nos Territórios: Propostas e diretrizes para os Planos Municipais de Adaptação Climática” (Frente Parlamentar Mista Ambientalista) e “Vote pelo Clima” (NOSSAS e Clima de Eleição).
A partir da análise desses documentos, segue alguns pontos relevantes para analisar as políticas municipais que podem ser adotadas:
Planos Municipais que dialogam diretamente com a capacidade de resiliência climática dos municípios: Plano Diretor, Plano de Saneamento Básico, Plano de Gestão de Resíduos Sólidos, Plano de Mobilidade Urbana, Plano de Habitação de Interesse Social, Plano de Contingência de Proteção e Defesa Civil, Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças climáticas / Planos de Ação Climática, Plano Municipal de Arborização, Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Frente Parlamentar Mista Ambientalista);
Incentivar e apoiar, tecnicamente e financeiramente, a produção orgânica local de alimentos adequados, saudáveis e sustentáveis, especialmente a de base agroecológica, seguindo as recomendações do Decreto nº 11.936/2024 (dispõe sobre a cesta básica) e reforçar a fiscalização sobre os agrotóxicos, garantindo o cumprimento das legislações competentes (Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável);
Instalar e garantir espaços de participação social como o Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA); criação da Lei Municipal Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) como lastro permanente para consolidar o funcionamento do sistema municipal de segurança alimentar e nutricional, e segurança jurídica para a criação de cargos e fundos públicos e elaboração de Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Comida do Amanhã);
Programas federais de combate à fome para o município solicitar adesão: Programa Bolsa Família, Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Restaurantes Populares, Cozinhas Solidárias e Comunitárias, Bancos de Alimentos e Colheita Urbana, Cestas de Alimentos, Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana, Produção Orgânica e Agroecológica, Programa Cisternas (Instituto Fome Zero).
É claro que as especificidades de cada município exigem respostas de adaptação adequadas às suas particularidades, não existindo um conjunto pré-estabelecido de soluções universais. No entanto, ter informações claras sobre o que e como pode ser implementado certamente contribui para enfrentar os desafios, sempre tendo no horizonte que o compromisso da agenda municipal no âmbito das mudanças climáticas não é só sobre a agenda ambiental, é transversal a outras agendas, como a da garantia da segurança alimentar, conforme apresentado ao longo do texto.
A crise climática é, assim, um desafio particularmente urgente para os tomadores de decisão a nível municipal. Temos que reconhecer que não estamos mais em um momento para nos preparar para “as futuras mudanças climáticas” e que a partir de agora as regras do jogo político municipal não podem escapar das leis da natureza. Também é importante lembrar que estamos sujeitos às condições políticas e ao engajamento dos atores envolvidos, como o acesso a fundos municipais e estaduais e o poder da sociedade civil organizada de influenciar a agenda política.
Ana Clara Candido Costa é mestre em Ecología Política y Alternativas al Desarrollo pela Universidad Andina Simón Bolívar (Equador).
Comments