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NEPOL UFJF

Enfrentando a pandemia no coração do sertão nordestino: Sobral (CE) e o combate ao novo coronavírus

Rodrigo Chaves de Mello 1

Claudine Carneiro Aguiar 2


Com clima quente, áspero e seco característico do semiárido brasileiro, Sobral localiza-se na região Norte do Estado do Ceará, distando aproximadamente 240 km da capital Fortaleza. Segundo estimativas feitas pelo IBGE em 2019, a cidade conta com uma população de 208.935 habitantes3, dos quais, 90% habitam a área urbana do município. Com um parque industrial relevante e com um razoável setor de serviços, a cidade se estrutura em torno de uma economia relativamente pujante. Está atrás apenas da capital do estado no quesito exportação de mercadorias e da Região Metropolitana de Fortaleza no que tange à arrecadação de ICMS. Contudo é uma cidade desigual. Ainda de acordo com os dados do IBGE, embora a renda per capita média dos trabalhadores formais da cidade gire em torno de dois salários mínimos, 44,2% de seus habitantes vivem com rendimento nominal per capita de até ½ salário mínimo. Este aspecto faz com que o município pontue 0,56 no índice de Gini4. Por fim, Sobral é uma cidade que ostenta com orgulho algumas de suas dignidades e glórias. Além de ter sido palco, em 1919, da comprovação da teoria geral da relatividade, é também o berço do poeta romântico e trovador indignado Antônio Carlos Belchior. Contudo, nada parece orgulhar mais os sobralenses do que um título que carrega inconteste: o município com maior IDEB do Brasil5.


Uma semana após Luiz Henrique Mandetta, então ministro da saúde do Governo Jair Bolsonaro, anunciar a confirmação do primeiro caso de Covid-19 no país, a prefeitura de Sobral promoveu um seminário para divulgar informações sobre prevenção e manejo do Novo Coronavirus6. A esta altura ainda não havia casos confirmados na cidade, o que possibilitou que o evento ocorresse em um auditório lotado.


O primeiro caso testado e confirmado para o novo Coronavírus no município foi divulgado no final da tarde do 17 de março de 20207. Um dia antes, contudo, face ao cenário que se avizinhava, o prefeito municipal, Ivo Ferreira Gomes (PDT), decretou estado de emergência na cidade, recomendando a suspensão das atividades de creches, escolas, universidades, bares, academias, teatros, igrejas e congêneres8. Dava-se, assim, início aos primeiros passos da batalha pela conformação do isolamento social no município.


Ato contínuo ao decreto, a secretaria municipal de saúde publicou o “Plano de contingência diante da infecção humana pelo novo coronavírus (COVID-19)”, informando as principais diretrizes de ação do poder local para o enfrentamento à pandemia9. Entre estas linhas de ação, o documento destacava a criação de um centro de operações de emergência em saúde pública, um fluxograma de interligação sanitária entre a atenção primária, secundária e terciária, a construção de um hospital de campanha e a intervenção sobre um hospital privado que passaria, doravante, e por tempo indeterminado, a ser gerido pelo poder público municipal10. Passado menos de um mês da publicação do decreto municipal e da confirmação do primeiro caso na cidade, em 05 de abril de 2020, o prefeito foi às redes sociais informar que o município registrava contaminação comunitária. Nesta ocasião, mesmo comemorando a ausência de óbitos, o prefeito confirmou que o município registrava 7 casos positivos para o Novo Coronavírus.


De lá para cá o cenário mudou drasticamente e o espalhamento do SARS_COV-2 pelo município tem se dado em escalada vertiginosa. No dia 09/06/2020, data em que redigimos estas linhas, a cidade confirma 3344 casos e 126 óbitos por COVID-1911. Somente a título de ilustração, em uma rápida comparação entre a incidência de casos positivos e óbitos confirmados por cada cem mil habitantes entre o Brasil, a cidade de São Paulo (epicentro nacional da pandemia) e o município de Sobral, chegamos ao seguinte panorama: Brasil12 com 355 casos por 100 mil habitantes, São Paulo13 com 683 e Sobral14 com mais do dobro, 1607. Quanto ao número de óbitos, temos 18,65 por cem mil habitantes para todo o Brasil, 77,7 em São Paulo e 69,5 em Sobral.


Diante deste cenário, o poder municipal tem, reiteradamente, manifestado preocupação e procurado alertar a sociedade sobralense, convocando-a para participar do esforço de combate à pandemia. Seja através da publicação diária de dados no site da prefeitura e da secretaria municipal de saúde15, seja através de lives e postagens em redes sociais de amplo alcance, inserção de campanhas em rádios e circulação de carros de som pelas ruas da cidade, o executivo municipal tem demonstrado um alinhamento total com as propostas adotadas pelo Governo do Estado e com as linhas de ação estabelecidas pela comissão científica do consórcio nordeste para o combate ao novo coronavírus. O alinhamento total com o Governo Estadual não é acidental. Eleito em 2016, Ivo Ferreira Gomes, prefeito do município, é o irmão mais novo de Cid e Ciro Gomes. Como apontam alguns estudos, desde pelo menos 2006 o clã Ferreira Gomes se consolidou como força hegemônica inconteste no Estado, dominando prefeituras e câmaras municipais chaves, assim como o executivo estadual e a assembleia legislativa. Municiando as inserções em debates de âmbito nacional com ações de êxito local, os Ferreira Gomes possuem na cidade de Sobral (berço da família) uma importante vitrine para seus feitos.16


Sobre esse alinhamento, destaco algumas falas do Prefeito em live realizada em sua conta no Facebook, em 25 de Maio de 202017, data em que o lockdown foi decretado pela primeira vez na cidade, disciplinando, entre outras coisas, a obrigatoriedade do uso de máscaras em ambiente não domiciliar, barreiras sanitárias para a circulação de veículos, redução do horário de atendimento de supermercados, redução do horário e escalonamento por idade e gênero no atendimento dos serviços bancários e a necessidade de motorista e pedestre justificarem, através de uma declaração oficial, as razões pelas quais transitam pelas ruas da cidade.


“… Hoje chegamos a 1800 casos confirmados e 53 mortos, e obviamente não posso deixar de lamentar isto, de sentir e me solidarizar com as famílias e amigos que perderam seus entes queridos. Mas este é o resultado do tamanho do isolamento social que nós, nós sobralenses como um todo, conseguimos fazer durante este período de pandemia. Eu não estou julgando se a população está ajudando ou não. Mas este é o resultado do isolamento que estamos fazendo. Então eu vou deixar para a população o julgamento sobre se estes números são aceitáveis ou não.(…) Eu tenho estabelecido as normas em Sobral sendo guiado pelo decreto estadual. Todas as medidas que estão sendo tomadas em Sobral estão em consonância, em completo acordo com os decretos estaduais. Completamente. Não há nenhuma divergência entre o que a gente está fazendo em Sobral e o governo do estado está fazendo no Ceará….”


Desta forma, a partir do discurso do mandatário local, percebe-se que apesar da adoção, em afinidade com as normativas do governo do estado, de medidas rígidas para garantir a prevenção do contágio, o prefeito deixa clara a sua insatisfação com o grau de adesão dos munícipes ao isolamento social, dividindo com eles a responsabilidade pelos números que, dia após dia, vão dando contorno à tragédia.


Três parecem ser as causas que respondem pela dificuldade em garantir maior adesão ao isolamento social preventivo: 1) a atuação de comerciantes, empresários e lojistas que além dos lobbies usuais em prol da abertura do comércio, tem procurado, na prática, sabotar a efetividade do decreto, promovendo funcionamento clandestino e improvisado de alguns estabelecimentos e, especialmente via blogs, alimentando o descontentamento popular contra a prefeitura18; 2) A tradição das sociabilidades intimistas e cordiais próprias às cidades pequenas e interioranas: O jogo de cartas na praça, a conversa na calçada em fim de tarde, o circuito de fofocas nas bodegas, etc. 19; 3) Os efeitos da crise econômica entre os segmentos sociais mais vulneráveis o que, além de forçar desempregados e trabalhadores informais a saírem de suas casas em busca de trabalhos precários e bicos, tem levado a uma peregrinação quase que diária de pequenas multidões de homens e mulheres às regiões centrais da cidade em busca do auxílio emergencial do governo federal.


No que concerne às formas como o governo municipal vem tratando os segmentos sociais mais vulneráveis, destacam-se algumas ações encampadas pelo “Plano Municipal de Contingência da Assistência Social”, publicado face ao contexto pandêmico. Este plano procura incrementar as ações de assistência social desenvolvidas pelo município, adequando-as à emergência sanitária. Além disso, a prefeitura tem fornecido sistematicamente cestas-básicas para a população de baixa renda. Assim, segundo o prefeito Ivo Gomes, em uma de suas lives20, “(…) nenhuma pessoa em Sobral está passando necessidade que nós tenhamos conhecimento. E nem passará. (…) Não há e nem haverá, enquanto eu estiver na prefeitura, nenhum sobralense passando necessidade.(…) Se você souber de algum sobralense passando necessidade, por favor, avise a gente e coloque ai o contato nos comentários que nós vamos atrás desta pessoa amanhã mesmo.”


Por fim, diante das ações do poder público, das dificuldades encontradas e do aumento exponencial do número de casos, é importante mapearmos a situação hospitalar. E aqui precisamos dar mais uma volta no parafuso. Isto porque se a atenção primária à saúde se dá em nível estritamente municipal, a atenção terciária voltada ao combate do COVID-19 se articula em termos macrorregionais. E é decisiva a afinação entre estes marcos espaciais.


A macrorregião de Saúde de Sobral nucleia 55 municípios, em um total de aproximadamente 1,6 milhões de habitantes. A macrorregião responde hoje por 17% do total de casos confirmados para COVID-19 no estado do Ceará, o que, em números absolutos, corresponde a 11.231 diagnósticos. Este território registrou 400 óbitos até a data em que estas linhas são lavradas. Segundo dados atualizados em tempo real pela plataforma Integra SUS gerida pelo governo do estado, a taxa de incidência para a macrorregião é de 910 pessoas por 100 mil habitantes e a de letalidade é de aproximadamente 36 pessoas por 100 mil habitantes21.


Esta macrorregião está equipada com 145 leitos de UTI de alta complexidade destinados exclusivamente ao tratamento do SARS-COV-2. Destes, 125 encontram-se localizados em Sobral. Em acordo com a plataforma integraSUS, no presente momento, 95 ou 61% destes leitos encontram-se ocupados22. Segundo reportagem publicada em 09/06/202023, 65% das internações de terapia intensiva em Sobral são de pacientes provenientes de outras municipalidades. E este é um ponto importante, pois segundo Regina Carvalho, secretária municipal de saúde de Sobral, “Embora [Sobral] tenha medidas mais restritivas, muitas cidades próximas não estão tendo estas medidas, não tem fechado seus comércios, tem feito pouquíssimos trabalhos de orientação da população”. Com efeito, diante do eminente colapso do setor terciário do sistema de saúde macrorregional em decorrência da absorção da população circunvizinha, a secretária de saúde parece apostar suas fichas na atenção primária ao explicar que a rede municipal de saúde tem “intensificado ações da saúde da família com visitas domiciliares. Principalmente nas famílias com idosos sintomáticos para fazer o monitoramento e evitar que se agravem. Temos nos preocupado com os distritos. Alguns com número de casos avançado. Estamos estruturando as unidades de atenção primária, ampliando o atendimento nas unidades básicas no final de semana”. 24


No dia 08/06/2020, em virtude tanto da inédita redução das internações em Fortaleza quanto da continuada pressão de lobistas de empresários, o governo estadual colocou em prática a fase 1 do plano de retomada das atividades econômicas e comerciais. Ao apresentá-lo, o governador Camilo Santana (PT) foi categórico: O plano tem abrangência estadual, mas, até segunda ordem não vigorará na macrorregião de Sobral que permanecerá em lockdown.


 

1 Professor adjunto do departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual Vale do Acaraú.


2 Mestre em Ensino na Saúde pela Universidade do Estado do Ceará.










11 Acompanhando a política estadual de testagem em larga escala, é importante destacar que Sobral tem feito um significativo esforço para o diagnóstico de pacientes. Com efeito, diante do oceano de subnotificações que dão a tônica do enfrentamento ao COVID-19 em âmbito nacional, é esperado que, sem desconsiderar a ferocidade própria ao SARS-COV-2, esta empreitada também termine revelando um alto número de casos e óbitos.


12 Conforme dados apresentados em https://covid.saude.gov.br/ – Consultado em 09/06/2020



14 Conforme dados apresentados em http://www.sobral.ce.gov.br/informes/principais/boletim-covid-19-em-sobral – Consultado em 09/06/2020



16 Sobre o tema da hegemonia dos Ferreiras Gomes no Ceará, recomendo os estudos e publicações feitas pelo pesquisador Cleyton Monte (LEPEM-UFC).



18 Alguns blogs respondem como principal espaço de articulação destas forças opositoras às atuais ações do poder público municipal. Destaco aqui o http://www.sobral24horas.com e http://www.sobralpost.com


19 Sobre tal aspecto, ver as análises do antropólogo Jorge Luan Teixeira (UEVA) em “Rotina no interior do Ceará não se altera mesmo diante da pandemia” https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/regiao/rotina-no-interior-do-cearanao-se-altera-mesmo-diante-da-pandemia-1.2230224






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