Teresa Cristina Shneider Marques (1)
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
Situada na parte mais central da América do Sul, Cuiabá conta com uma população de 612 mil pessoas segundo o IBGE (2). O número aumenta para 897 mil quando somada a população de Várzea Grande, cidade vizinha separada pelo rio que dá nome à capital, com a qual Cuiabá é altamente integrada quanto à oferta de serviços. Ainda que seja localizada na Amazônia Legal, conhecida pela proximidade com o Pantanal, a cidade é marcada pelo baixo índice de arborização das vias públicas (3) e reivindicada pelos políticos locais como capital do agro-negócio no país (4) .
Pode-se dizer que seu eleitorado é conservador, uma vez que trata-se de uma cidade cuja prefeitura nunca foi ocupada por políticos de esquerda após a redemocratização e mesmo antes. Trata-se de uma das capitais onde Jair Bolsonaro conquistou uma boa votação nos dois turnos, alcançando 66,94% dos votos válidos no segundo turno da última eleição presidencial (5). Eleitoralmente, o cargo de prefeito de Cuiabá é estratégico para os políticos locais, uma vez que a cidade representa 17,1% do eleitorado de Mato Grosso, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Se considerado que Várzea Grande representa 7,25% da população do estado, fica evidente a projeção garantida pela atuação como prefeito da capital, tal como ocorre nas capitais de muitos estados brasileiros, mas é intensificado em um estado pouco populoso como Mato Grosso (6). Diante desse cenário, pode-se compreender porque é acirrada a disputa entre o ocupante do posto de governador do estado e o prefeito da capital, mesmo quando, em nível nacional, eles se encontram alinhados.
Atualmente a prefeitura é ocupada por Emanuel Pinheiro, filiado ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido que na década de 1980 lançou importantes nomes de Mato Grosso para política nacional, tais como Dante de Oliveira, autor da emenda das Diretas Já (7), eleito prefeito pelo PMDB em 1986. Todavia, desde Dante de Oliveira, o MDB não conquistava a disputa, que foi dominada pelo Partido da Social Democracia do Brasil (PSDB) por mais de uma década. O prefeito que antecedeu Pinheiro foi Mauro Mendes, então eleito pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e atualmente filiado aos Democratas (DEM). Atualmente governador do estado, Mendes protagoniza uma rivalidade política explícita com Pinheiro, marcada por enfrentamentos verbais públicos.
É irônico que a rivalidade entre os dois tenha girado em torno do tema da saúde pública da capital desde 2019, pouco antes da pior crise de saúde pública do país em décadas. Desde então, ambos disputam a “paternidade” do Hospital Municipal de Cuiabá (HMC) (8). Considerada a maior obra em saúde pública do Estado de Mato Grosso, ela foi iniciada durante a gestão de Mendes e entregue por Pinheiro no dia 18 de novembro de 2019. Esse episódio criou uma espécie de disputa pelo título de gestor preocupado com a saúde dos cuiabanos.
O fato é que a saúde pública de Cuiabá acolheu o coronavírus tão propensa a entrar em colapso como qualquer outra cidade brasileira, como afirmou o próprio prefeito em entrevista à CNN em 11 de abril (9) . O Tribunal de Contas de MT realizou levantamento de todos os leitos de UTI e enfermagem, e de insumos e profissionais disponíveis para o combate ao COVID-19 nos hospitais públicos e conveniados de Cuiabá e Várzea Grande até o dia 1° de abril e identificou a existência de 147 leitos de UTI, estando prevista a criação de mais 132 até o dia 31 de maio. Quanto aos respiradores havia 37 “disponíveis em reserva” (10).
Em um primeiro momento, a eclosão da crise do Covid-19 levou prefeito e governador a firmarem uma trégua nos embates em nome de um combate coordenado. O plano de integração entre Cuiabá e Várzea Grande anunciado pelo governo de estado apontou para essa direção no início da crise (11). Então alinhado com o governador, o prefeito lançou mão de vários decretos para tentar enfrentar a crise que se anunciava, mesmo antes do registro de qualquer caso na cidade. Ainda sem nenhum caso confirmado em Cuiabá, no dia 18 de março, por força do decreto municipal 7.846, complementar ao decreto estadual 7.839, suspendeu-se, a partir do dia 23, as atividades das escolas públicas municipais, garantindo o fornecimento de merenda escolar. O ensino fundamental e EJA seriam reforçados em ambiente virtual. Recomendou-se a suspensão das atividades em escolas particulares (12). Entre os decretos seguintes, convém destacar o N. 7.849 do dia 20, após a confirmação do primeiro caso de COVID-19 no município, declarando situação de emergência (13).
Todavia, o pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro no dia 24 de março afetou a trégua. Dois dias depois de tal pronunciamento, o governador recuou do decreto que havia assinado poucos dias antes, no dia 20 de março, com uma série de restrições, ao permitir o funcionamento do comércio – desde que com medidas de proteção – e exigir a unificação de ações da prefeitura (14). Cabe destacar que, ao menos nas redes sociais, Mendes têm conseguido significativo apoio da população.
Era o fim da trégua. O prefeito Emanuel Pinheiro acusou Mendes de cometer invasão de competência e impetrou mandado de segurança contra o estado do Mato Grosso para suspender a eficácia de dispositivos do decreto estadual 425, de 26 de março (revogado pelo decreto 432), que estabeleciam que os prefeitos deveriam ser menos restritivos nas medidas adotadas no âmbito do município (15). Em comunicado no qual justificava sua divergência com o governou declarou: “O vírus não circula. Quem circula são as pessoas. Por isso, cuidar da sua saúde, cuidar das pessoas é tão fundamental. Cuiabá não pode sucumbir” (16). Por outro lado, o governador teve vitória ao conquistar decisão judicial favorável em 22 de março determinando que 30% do transporte público da capital continuasse funcionando, depois de a Prefeitura ter publicado um decreto no dia 20 de março proibindo a circulação do transporte público municipal (17).
Enquanto as trocas de farpas entre prefeito e governador em torno da questão das medidas restritivas de combate à pandemia continua a todo vapor no Instagram – principal canal de comunicação da política local –, Cuiabá se confirma como o epicentro da propagação do vírus em Mato Grosso. Segundo dados da Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso, no dia 17 de abril, havia 162 casos confirmados no estado, sendo 88 em Cuiabá. Do total de casos no estado, 93 estavam em isolamento domiciliar, 57 recuperados e sete hospitalizados – sendo cinco em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e dois em enfermaria. No estado foram registrados 5 óbitos em decorrência do Covid-1918.
O prefeito Emanuel Pinheiro mantém o discurso alinhado ao agora ex-ministro da saúde, Luis Henrique Mandetta. Em entrevista à CNN destacou a base técnico-científica das medidas adotadas e demonstrou firmeza em manter o isolamento social mesmo considerando uma tendência para o “relaxamento generalizado e um destemor por parte da população” (19). Em um momento político marcado por evidente desgaste do presidente, Emanuel Pinheiro assumiu um lado, seja por meio de decretos, seja por meio de declarações, seja por meio de ações simbólicas. É emblemático que, no aniversário de 301 anos de Cuiabá no último dia 08 de abril, Pinheiro tenha exposto no site da prefeitura que acompanhou a missa comemorativa ministrada na catedral da cidade pela internet, a partir da sua residência (20). Ao que tudo indica, em Cuiabá o prefeito importa, mas a consciência de que há um eleitorado conservador em disputa, também.
(1) Graduada em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
(4)http://www.mt.gov.br/-/5809575-governo-apoia-projeto-que-transforma-cuiaba-na-capital-do-agronegocio
(5)https://especiais.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2018/resultados/municipios-mato-grosso/cuiaba-mt/presidente/
(6)https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mt/panorama7http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/dante-martins-de-oliveira
(8)https://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?id=463779¬icia=mendes-diz-que-deixou-hmc-encaminhado-e-nao-reconhece-paternidade-de-emanuel&edicao=2
(9)https://www.gazetadigital.com.br/editorias/politica-de-mt/fantasma-do-colapso-na-sade-amea-a-todos-diz-emanuel/612879
(10)https://www.tce.mt.gov.br/arquivos/downloads/00097000/Relatorio%20TCE%20UTIs.pdfhttp://www.varzeagrande.mt.gov.br/conteudo/18483/a-intencao-e-fortalecer-a-rede-de-servicos-no-atendimento-as-pessoas-acometidas-pela-doenca
(11)https://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?id=468575¬icia=prefeito-levanta-bandeira-branca-com-mendes-e-diz-que-uniao-e-fundamental-para-vencer-coronavirus&edicao=1
(14)https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2020/03/26/novo-decreto-do-governo-de-mt-libera-funcionamento-do-comercio-desde-que-sigam-as-normas-de-seguranca-prevencao-e-combate-ao-coronavirus.ghtml
(15)https://leisestaduais.com.br/mt/decreto-n-425-2020-mato-grosso-consolida-as-medidas-temporarias-restritivas-as-atividades-privadas-para-prevencao-dos-riscos-de-disseminacao-do-coronavirus-covid-19-e-da-outras-providencias
(16)https://www.rdnews.com.br/coronavirus/conteudos/126027http://www.mt.gov.br/-/13996560-governo-garante-na-justica-que-servicos-essenciais-sejam-mantidos-em-cuiaba
(18)http://www.diariodecuiaba.com.br/cuiaba-urgente/prefeito-estuda-rodizio-de-carros-e-ate-um-toque-de-recolher/529414
(19)https://www.agazeta.com.br/brasil/cuiaba-estuda-toque-de-recolher-para-combater-avanco-do-coronavirus-0420
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