Daniel Estevão Ramos de Miranda
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
O caso de Campo Grande-MS aponta para o problema da sustentação, por tempo suficiente, de estratégias mais rígidas de enfrentamento à Covid-19. Até aqui, pode-se distinguir três fases, que constituem também três estratégias distintas, mas relacionadas, de enfrentamento a Covid-19: 1°) Preparação: até o primeiro caso (14 de março), orientações e planejamento geral, restritos aos órgãos de saúde; 2°) Isolamento social rígido: de 15 de março a início abril, decretos visando limitar tanto quanto possível a circulação das pessoas, incluindo fechamento do comércio; 3°) Isolamento social flexível: do dia 17 de abril em diante uma sequência de decretos estabeleceu critérios para reabertura de estabelecimentos privados, mantendo órgãos públicos fechados (escolas) ou em teletrabalho (vários órgãos municipais), se possível.
A capital do estado de MS concentra boa parte da infraestrutura de saúde do estado: 39% dos leitos de internação do estado e 63% dos leitos de UTI se encontram em Campo Grande(1). A cidade é governada atualmente por Marquinhos Trad (PSD), eleito em 2016 para seu primeiro mandato.
De acordo com o Boletim mais atualizado (26 de abril), MS tem 234 casos confirmados, destes 125 (53%) em Campo Grande. São 13 casos por 100 mil habitantes, acima dos 8,4 por 100 mil hab. de MS, mas abaixo de outras cidades do interior e da taxa brasileira, que passa de 27 por 100 mil hab.
As primeiras declarações de maior repercussão sobre a Covid-19 em Campo Grande, feitas por autoridades públicas, ocorreram no dia 28 de fevereiro, dois dias após se confirmar oficialmente os primeiros casos da Covid-19 no país. Elas vieram do então Ministro da Saúde, Luiz H. Mandetta, que mostrou confiança na capacidade da cidade para o enfrentamento da pandemia: “Eu conheço a rede de Campo Grande, os médicos, enfermeiros, os agentes comunitários e todos os bairros, e acho que a cidade tem tudo para fazer um bom trabalho nessa situação”(2). Mandetta foi Secretário de Saúde de Campo Grande entre 2005 e 2010, na gestão de Nelsinho Trad (atualmente senador), irmão de Marquinhos Trad. Essa relação próxima, política e familiar(3), facilitou o alinhamento político da cidade com o Ministério da Saúde e o governo estadual, dado que Campo Grande passou a ser, pelo menos em parte, uma vitrine para o então ministro da Saúde(4).
As iniciativas municipais
1° Momento: até a confirmação do primeiro caso, Campo Grande havia tomado algumas medidas restritas à sua Secretaria de Saúde (SESAU). Foram emitidas algumas notas técnicas com medidas de prevenção e controle, um Boletim diário (de segunda a sexta) passou a ser publicado e, mais importante, um Plano de Contingência foi divulgado no dia 27 de fevereiro, o qual foi construído seguindo as diretrizes do Ministério da Saúde e da OMS (Organização Mundial da Saúde). Dessa forma, quando o primeiro caso apareceu, já havia um alinhamento com atores de maior envergadura (estadual e nacional) e diretrizes básicas para lidar com a situação.
2° Momento: contudo, as primeiras medidas de maior impacto foram publicadas a partir de 15 de março, um dia após a confirmação dos primeiros casos na cidade. As aulas nas escolas municipais foram suspensas por 20 dias, bem como todos os eventos públicos e eventos privados com mais de 100 pessoas, incluindo aí igrejas, teatros, cinemas etc. Foi decretada situação de emergência em saúde pública, determinando: flexibilização das normas de contratação de bens e serviços públicos, permissão de teletrabalho e/ou escalonamento para servidores municipais (a critério das chefias imediatas), restrição de acesso a prédios públicos, suspensão ou adiamento de reuniões presenciais, intensificação de ações informativas e de higienização de ambientes públicos, entre outras medidas.
Entre 15 e 27 de março, a Prefeitura publicou pelo menos 32 documentos normativos ou de orientação (Decretos, Resoluções, Notas técnicas entre outros), fora os Boletins diários. Os de maior impacto sobre o cotidiano da população foram:
19 de março: suspensão de atendimentos presenciais em comércios não essenciais. Bloqueio do passe de ônibus de estudantes e idosos, restringindo diretamente a mobilidade de aproximadamente 80 mil pessoas ou aproximadamente 40% da média diária de passageiros de transporte público na cidade(5).
20 de março: suspensão das atividades do Terminal Rodoviário por 20 dias e do transporte público urbano por 15 dias, e exigência de que empregadores providenciassem meios alternativos de transporte para seus funcionários.
21 de março: toque de recolher na cidade, entre as 20h e as 5h da manhã do dia seguinte.
27 de março: barreira sanitária no aeroporto da cidade.
Nota-se, assim, um esforço da Prefeitura em promover medidas de prevenção e segurança sanitária, em torno do eixo do distanciamento social, em desacordo com a posição do Presidente da República, Jair Bolsonaro, de “retorno à normalidade” em pronunciamento em rede nacional de televisão exatamente no mesmo período (24 de março). Mas, se por um lado havia tal desacordo, de outro estava o alinhamento com o Governo estadual e, principalmente, com o Ministério da Saúde.
Apesar de tal alinhamento, contudo, o discurso do Presidente Bolsonaro do dia 24 de março e, principalmente, um Decreto da Presidência da República do dia 26 ampliando o rol de atividades essenciais, levou a um relaxamento dos esforços municipais. Ao ser questionado se havia “mudado de ideia em menos de uma semana” e se o risco já havia passado, o prefeito Marquinhos Trad foi direto: “pelo contrário, minha ideia continua a mesma, quem mudou de ideia foi o Presidente da República”, ou ainda, “o que o Presidente Bolsonaro fez foi jogar contra Campo Grande”(6).
3° Momento: nova leva de decretos saiu a partir do dia 17 de abril, tendo dois grandes eixos: reabertura de estabelecimentos comerciais mediante assinatura de um Termo de Compromisso, comprometendo-se a obedecer ao Plano de Contenção de Riscos. Para fiscalizar esses locais, a Prefeitura ampliou sua capacidade de vigilância autorizando agentes de trânsito a fiscalizar a observância daqueles planos.
A estratégia adotada pela Prefeitura de Campo Grande, de meados de abril até a presente data, foi tentar combinar a rigidez das medidas de baixo impacto econômico imediato e/ou sobre zonas de decisão mais imediatamente sob a autoridade municipal (suspensão das aulas, toque de recolher, regime de trabalho flexível para servidores etc.) com uma flexibilização progressiva das regras para atividades econômicas(7).
Sendo assim, desenha-se na cidade uma estratégia de construção de corresponsabilização junto ao empresariado e sociedade civil, liberando suas atividades mediante a observância de protocolos que, combinados com a ampliação da capacidade de fiscalização municipal, tem por objetivo manter a cidade aberta às pessoas, mas restrita para o vírus. Estratégia arriscada, resultante mais da correlação de forças políticas do que da análise fria do risco e dos dados. Estratégia de convivência e sobrevivência que ilustra o grande dilema imposto pela pandemia entre os elevados custos presentes x ganhos de médio e longo prazo.
1Todas as informações sobre infraestrutura de saúde foram extraídas do Datasus: http://www2.datasus.gov.br/
2https://www.campograndenews.com.br/cidades/capital/-capital-vai-fazer-um-bom-trabalho-diz-ministro-sobre-casos-de-coronavirus
3Mandetta é primo dos irmãos Trad.
4Mesmo após sua saída do Ministério da Saúde, tal relação não seria facilmente esquecida, principalmente quando o “primo de Mandetta” tomasse medidas polêmicas: https://www.oantagonista.com/brasil/por-decreto-de-primo-de-mandetta-shoppings-de-campo-grande-reabrem-portas/
5https://www.campograndenews.com.br/cidades/capital/prefeitura-suspende-passe-livre-de-80-mil-idosos-e-estudantes-a-partir-de-sabado
6https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/noticia/2020/03/26/com-decreto-da-prefeitura-de-campo-grande-lotericas-industria-podem-reabrir-nesta-sexta-e-igrejas-com-restricoes-na-segunda.ghtml
Comments