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NEPOL UFJF

Atenção Primária à Saúde no contexto municipal brasileiro e a crise da COVID-19

Michelle Fernandez

Professora e pesquisadora no IPOL/UnB


Luísa da Matta Machado Fernandes

Pesquisadora na Fiocruz - MG


A Atenção primária à Saúde (APS) ou Atenção Básica, termo utilizado no Brasil, é o nível de cuidado que pretende ser a principal porta de entrada dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Esse nível do cuidado é referenciado como potencialmente resolutivo para cerca de 80% das demandas de saúde da população, baseando-se nos seguintes atributos/princípios: primeiro contato; longitudinalidade; integralidade ou abrangência; coordenação do cuidado; centralidade na família; orientação para a comunidade e competência cultural1. Para entendermos como a APS é organizada no Brasil e como pode contribuir no cuidado da população durante a Pandemia da COVID-19 é necessário apresentar como ele se estruturou.


A Constituição Brasileira de 1988, conhecida como constituição cidadã, incorporou em seu capítulo da seguridade social a saúde como um direito de todos e dever do estado, em grande medida graças ao movimento da Reforma Sanitária e a mobilização para a submissão de uma emenda popular nesse sentido. Em seguida, a Lei 8080/1990 criou o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Com o novo sistema seria instituída uma série de políticas e programas que mudariam o cenário brasileiro de assistência à saúde.


O Movimento Reforma Sanitária foi fundamental para a inclusão dos temas de saúde na nova Constituição e para a promoção de avanços nos cuidados em saúde para além da estrutura hospitalocêntrica existente até então. No final da década de 1970 o Movimento começa a ganhar força e, em 1986, com apoio dos movimentos sociais e sindicatos, foi realizada a 8a Conferência Nacional de Saúde. É nesta conferência que se consolida a estrutura de um sistema de saúde para além do cuidado hospitalar precário e restrito a poucos que existia até então no Brasil. Começa a se concretizar um sistema de saúde baseado nos preceitos da regionalização, resolutividade, com cuidado em saúde descentralizado e participação dos cidadãos na sua estrutura de gestão. Nesse contexto, experiências internacionais como Canadá, Reino Unido e Cuba apontavam para o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde enquanto coordenadora do cuidado em saúde da população.


O novo arranjo institucional Brasileiro, pós-Constituição de 1988, apontou para avanços importantes na direção da descentralização de políticas públicas no país, conferindo maior autonomia a estados e municípios. Nesse novo arranjo, os municípios ficaram responsáveis pela Atenção Primária à Saúde, no âmbito do SUS. Os municípios passaram a ganhar maior protagonismo na saúde, mas foram colocados diante do desafio de ofertar o cuidado nos territórios. Nesse sentido, em 1991 foi criado o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e em 1994 o Programa de Saúde da Família (PSF). No primeiro momento, houve uma focalização nos municípios mais pobres. A Partir de 1998, passamos por um processo de expansão da APS, quando PSF se torna Estratégia Saúde da Família (ESF) e passa a ser central na organização da atenção à saúde nos municípios brasileiros. Entre 1998 e 2016, uma série de programas foram criados no sentido de expandir a APS e possibilitar a implementação do novo modelo de assistência nos municípios brasileiros (Figura 1).


Porém, entre 2016 e 2019, passamos por um processo de desinvestimento e debilitação do SUS e da APS. A Emenda Constitucional 95, que limita o crescimento das despesas públicas por 20 anos, mudanças na Política Nacional de Atenção Básica e na forma de financiamento da APS fragilizaram a porta de entrada do sistema de saúde brasileiro. A pandemia da COVID-19, maior crise sanitária dos últimos 100 anos, chega no momento em que o SUS se encontra ainda mais subfinanciado e a APS com acesso a menos recursos, humanos e financeiros.


Sabemos que crises sanitárias testam a resiliência dos sistemas de saúde e exigem respostas governamentais eficazes. Na crise da COVID-19, mesmo sistemas de saúde bem estruturados entraram em colapso devido ao rápido crescimento de hospitalizações para tratamento de pacientes graves. Por isso, intervenções de saúde pública no território voltadas para o diagnóstico precoce, o rastreamento e o isolamento de casos positivos são necessários no sentido de promover o controle do avanço da epidemia e a preservação do correto funcionamento do sistema de saúde como um todo. Essas ações desempenhadas no território estão vinculadas, por excelência, ao trabalho das equipes da APS. Portanto são funções da APS em um contexto de crise sanitária:


1- Vigilância em Saúde – apoiar as ações de vigilância no território com rastreamento de casos suspeitos e indicação de isolamento;

2- Informações sobre prevenção e cuidado – orientar e esclarecer à população considerando o diagnóstico e realidade do território;

3- Gerenciamento de casos leves – diagnosticar e monitorar casos leves de COVID-19 e egressos hospitalares;

4- Primeiro contato com o SUS e continuidade do Cuidado – manter o cuidado necessário em saúde dentre os pacientes do território. Planejar as ações de acordo com outras demandas recorrentes para além da emergência sanitária em curso;

5- Assistência aos vulneráveis – acompanhar de forma mais atenta aos usuários mais vulneráveis no território.


A partir desse cenário, podemos afirmar que o sistema de saúde brasileiro, pelo alicerce construído com políticas implementadas ao longo das últimas três décadas, tinha um grande potencial de resposta à pandemia de COVID-19, como aconteceu nas epidemias de dengue, zika e chikungunya nos últimos anos.


No entanto, depois de quase 6 meses da pandemia no Brasil, podemos concluir que não tivemos uma resposta adequada à emergência sanitária instaurada em 26 de fevereiro. Uma das fragilidades da estratégia nacional foi exatamente a pouca participação da APS. O erro dessa estratégia, que priorizou responsabilização individuais pelo distanciamento social e investimento em saúde na expansão da estrutura hospitalar, fica evidente quando observamos o lugar secundário da Atenção Primária na resposta pública à crise sanitária na maioria dos municípios. Nacionalmente o que vimos foi a construção de grandes hospitais de campanha, ampliação de leitos hospitalares e compra de respirados, ações necessárias em diversas partes do país, que enfrentavam um vazio assistencial ou em regiões metropolitanas que absorvem pacientes para além dos limites do município, mas não suficiente para reduzir o avanço da epidemia.


Outro fator importante para a subutilização da Atenção Primária à Saúde no enfrentamento da pandemia é a ausência do Ministério da Saúde na coordenação das políticas nesse período. Ao longo dos últimos 30 anos observamos, em temas de saúde, um modelo de atuação baseado no compartilhamento e na coordenação federativa. Esse modelo tem sido o alicerce do SUS. O comando do sistema, referenciado no Ministério da Saúde, era até então uma constante nas diversas políticas implementadas ao longo das últimas décadas: campanhas de vacinação, enfrentamento a surtos de arboviroses ou mesmo questões regionais que demandavam cuidados redobrados. Porém, na crise sanitária que vivenciamos, nota-se uma diferença no equilíbrio de forças que sustenta o processo das políticas de saúde. Nesse momento, observa-se a incapacidade do Governo Federal de produzir espaços de diálogo, impondo aos governos subnacionais a condução de ações de enfrentamento da pandemia com a ausência de orientação e suporte estrutural da autoridade sanitária nacional. A descoordenação federal não apontou os caminhos para construir pontes que evitassem a superlotação de leitos existentes. Esses caminhos passam, necessariamente pela atuação da APS. Além disso, faltou suporte para desenvolvimento de tecnologias e disponibilidade de insumos para que a as equipes de saúde da família pudessem monitorar os pacientes com quadros leves de COVID-19, evitando o agravamento do quadro em muitos deles.


Figura 1. Cronologia da Atenção Primária à Saúde no Brasil



Fonte: Elaboração própria.


Falhamos, mas a pandemia ainda não chegou ao fim e essa caminhada ainda parece ser longa. Portanto, ainda não é tarde para que a APS se some às ações prioritárias de combate à pandemia. Identificar pacientes suspeitos, monitorar casos leves, encaminhar para o hospital ou serviço de referência e acompanhar os egressos hospitalares são ações a serem implementadas por cada equipe de saúde da família. Para isso, é preciso um direcionamento claro da política, fluxo de informações e desenho do caminho do cuidado do paciente. Além disso, equipar a APS com equipamentos de trabalho adequados também precisa ganhar prioridade, seja para o monitoramento a distância dos pacientes, seja para a triagem de demandas urgentes, ou suporte da comunicação com outros serviços de saúde. Também é fundamental voltar o olhar para os trabalhadores da Atenção Primária. Esses profissionais necessitam de equipamentos e suporte para continuar atuando na linha de frente do SUS.


A APS funciona como uma das principais portas de entrada da população ao serviço público e como um equipamento capilarizado e territorializado capaz de gerar inclusão social. Assim, a Atenção Primária à Saúde será também essencial no que podemos chamar de pós-pandemia: atuação na distribuição à população da tão esperada vacina da COVID-19; atendimento aos pacientes com sequelas pós-COVID-19; atenção aos pacientes com queixas vinculadas à saúde mental, que foram exacerbadas durante a pandemia; entre outras demandas. Entender e reconhecer como a população enfrentou a pandemia será necessário para produzir políticas públicas consistentes no momento pós-COVID e as equipes da atenção básica são instrumentos chaves nessa tarefa. Quanto mais Atenção Primária à Saúde, mais acesso equitativo em saúde e combate às desigualdade sociais. Por isso, é necessário fortalecer a APS para a atuação na pandemia e na pós-pandemia. Isso passa por repensar os investimentos à Atenção Primária e à retomada da coordenação de suas atividades pelo Ministério da Saúde. Caso contrário, quando mais iremos precisar da APS, mais ela estará fragilizada e em piores condições objetivas de prover cuidado à população, sobretudo aos mais vulnerável.


 

1 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde; 2002. 726p.



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