José Angelo Machado
Departamento de Ciência Política
Universidade Federal de Minas Gerais
A avaliação dos resultados de estratégias adotadas pelos diversos países no enfrentamento à Covid-19 tem confirmado o que especialistas de diversas áreas vinham dizendo, há meses, quanto aos benefícios das medidas de distanciamento social. Países que adotaram esta estratégia de forma coordenada em todo território nacional foram bem sucedidos na contenção da pandemia; os que não o fizeram colheram os piores resultados. Neste segundo grupo, dois casos mal sucedidos se destacam: o brasileiro e o norte americano. Ambos países liderados por presidentes negacionistas e de extrema direita, eles têm em comum ainda o fato de serem federações de grande extensão territorial e de conviverem com a diversidade de comportamento dos governos de unidades subnacionais diante da Covid -19.
Parece verdade que, se a ampla variabilidade das escolhas políticas marca o federalismo americano, essa não seria necessariamente uma vantagem sua em relação ao brasileiro, especialmente no que se refere à capacidade de enfrentamento da Covid-19, como de resto para a construção de políticas sociais nacionais. Como ocorrido em outras áreas governamentais, o Sistema Único de Saúde-SUS contou, desde sua criação na Constituição de 1988, com um conjunto de mecanismos para coordenar escolhas políticas de estados e municípios na direção do alcance de objetivos e metas nacionais, seja em termos de cobertura ou de universalização do acesso aos serviços. Tais mecanismos envolveram a introdução de dispositivos constitucionais e legais, como a Emenda Constitucional 29-2000, que estabeleceu o mínimo a ser alocado no setor por cada nível de governo. Envolveram também a transferência condicionada de recursos para a implementação de programas federais, com forte poder de indução para a integração de estados e municípios a estratégias nacionais. Envolveram, inclusive, a pactuação de responsabilidades entre os três níveis de governo em uma arena federativa setorial, chamada Comissão Intergestores Tripartite. O SUS se tornou assim “único”, mesmo existindo em uma federação e sua construção seria um trunfo, vis a vis a fragmentação e a falta de coordenação dos sistemas nacionais de saúde em outros países, inclusive unitários. Essa vantagem foi desprezada pelo Governo Bolsonaro, que negou não só a pandemia, mas também o próprio aprendizado institucional anterior no uso destes instrumentos de coordenação, inclusive para o combate a doenças contagiosas como a Pandemia da Influenza em 2009-2010. Por fim, a fim de manter o controle sobre as condições de restrição às atividades econômicas, o Executivo Federal amargou uma derrota no Supremo Tribunal Federal em abril ao tentar estabelecer uma relação hierárquica entre níveis de governo por meio da Medida Provisória 926/2020. Restou aos estados e municípios reagir predominantemente no modo individual.
O comportamento do vírus não respeita fronteiras e a variação das estratégias entre unidades federadas parece ampliar sobremaneira suas chances de permanência nos dois países, bem como as proporções assumidas pela própria pandemia em ambos, como aponta o crescimento dos casos no Centro Oeste e Sul brasileiros, bem como nos estados do Sul dos Estados Unidos. Uma vez contido num estado ou município que adotou medidas restritivas onde apareceu inicialmente, o vírus reaparecerá e se espalhará naquelas unidades que adotaram estratégias menos restritivas para, quando contido nestes últimos, poder voltar para onde houver relaxamento novamente. Brasil e Estados Unidos parecem padecer do mesmo problema, para além dos respectivos presidentes: estados e municípios pressionados por setores econômicos ou da população local e, submetidos individualmente, a partir daí, à tentação de flexibilizar restrições sociais na expectativa de pegar carona no esforço restritivo dos demais. Se bem sucedidos, manteriam suas economias menos deprimidas e surfariam no esforço alheio daqueles que não cederam às pressões locais. Mas os efeitos agregados dessa escolha parecem até aqui se mostrar trágicos, tanto do ponto de vista nacional quanto da popularidade destes gestores, como tem apontado pesquisas recentes. Mas se é falso o dilema entre a vida e a economia, parece haver outro dilema operando no cérebro de muitos governadores e prefeitos brasileiros.
Para tratar desse dilema, recorro à Teoria dos Jogos, estratégia metodológica aplicada a diversos campos do conhecimento humano – como a Biologia, Economia, Sociologia ou Ciência Política – e que apresenta resultados instigantes na elucidação dos problemas de cooperação entre agentes em interação. Nesse particular, há algum tempo, o Dilema do Prisioneiro se popularizou ao oferecer alternativas para a interpretação ou análise de problemas de cooperação a partir de um exemplo criado em sala de aula, pelo professor e matemático canadense Alfred Tucker, ainda nos anos 40.
Simplificando e adaptando, por razões didáticas e econômicas, trata-se da situação em que dois supostos arrombadores presos são isolados e defrontados com um interrogatório. O delegado anuncia que, na hipótese de confessarem ambos, eles ficariam presos por tentativa de roubo, mas teriam uma redução significativa da pena. Caso ambos não confessassem (havendo assim cooperação entre os parceiros de delito), ficariam presos por um período menor ainda, já que apenas penalizados por porte ilegal de arma. Caso um confesse (traindo, assim, o “parceiro cooperativo”) e o outro não, o delator sairia livre enquanto o parceiro cumpriria a pena completa pela tentativa de roubo. Considerando aqui “não confessar” como equivalente de cooperar com o grupo (de dois arrombadores, no caso) e “confessar” como traição ao mesmo, o que confere status de “quase celebridade acadêmica” a essa narrativa é a percepção, por cada um dos envolvidos, de que seja qual for a escolha do outro entre confessar ou não, cada suposto arrombador minimiza seu próprio tempo preso escolhendo “confessar”. Vejamos: (1) Se meu parceiro confessa (me traindo), ficarei menos tempo preso confessando também – e cumprindo a pena de roubo com o atenuante da colaboração com a Justiça – já que, na hipótese de não confessar, cumpriria a pena completa; (2) Se ele não confessa (cooperando comigo), eu me livrarei da prisão se confessar, mas ficarei detido por porte de armas se não o fizer, mesmo que por pouco tempo. Não importa o que o outro escolha, no ambiente de egoísmo universal, a traição ao parceiro é sempre a melhor opção.
A disjunção entre a melhor escolha sob o cálculo individual egoísta e o resultado agregado do ponto de vista coletivo é patente: se ambos confessam (e se traem), eles ficam mais tempo presos que ficariam se ambos não confessassem (ou cooperassem). Ao agir de forma egoísta, sabendo que o outro também o faz, ambos terminam por produzir um resultado pior que o obtido se ambos cooperassem um com o outro. Acrescentando mais drama ao caso, a simples comunicação entre os parceiros, mesmo sob o compromisso verbal de cooperar, não alteraria a tentação de trair o parceiro, pois ela não afeta a estrutura de incentivos que torna a traição tentadora para ambos.
Os problemas de ação coletiva, tal como delimitados pelo economista Mancur Olson Júnior nos anos 60, se referiam a casos em que a tentação de pegar carona na colaboração dos demais membros do grupo, que arcariam com os custos, corroem a cooperação ao tornarem a deserção tentadora. Mais recentemente Katharina Holzinger, cientista política alemã, reexaminou os problemas de ação coletiva à luz de desenvolvimentos posteriores da Teoria dos Jogos e apresentou novas situações igualmente ameaçadoras à cooperação, como aquelas em que, mesmo quando resultados da cooperação mútua superam os da deserção unilateral, haveria riscos de confiar na promessa de cooperação do parceiro (problemas de coordenação) ou, ainda, aquelas em que seria difícil se chegar a um acordo quanto à divisão dos ganhos da cooperação entre parceiros (problemas de distribuição ou desacordo), dentre outras. Problemas deste tipo são muitas vezes mais interessantes e corriqueiros que os problemas de deserção representados pelo Dilema do Prisioneiro.
O dilema dos governos subnacionais, no Brasil ou nos Estados Unidos, parece se dirigir para a opção entre agir ou não egoisticamente para atender pressões de interesses locais, supondo que a cooperação dos demais governos possa controlar ou pelo menos mitigar a pandemia. E, assim como no Dilema do Prisioneiro, o egoísmo universal poder pôr tudo a perder: as vidas e a economia. A estratégia individual de fazer o “melhor” para si ao não cooperar, não importa o que os outros façam, termina por levar todos (nós incluídos) ao pior resultado possível: o prolongamento da presença do vírus e a maximização dos seus danos, tanto em vidas quanto em PIB. O Dilema do Prisioneiro pode, nesse sentido, ser evocado na sustentação da necessidade de ação do Estado coordenador frente ao poder destrutivo do mercado desregulado, assim como da necessidade de um governo central com capacidades para constranger ou estimular governos subnacionais numa federação a agir em benefício da coletividade, evitando que se auto destruam e, assim, “salvando-os de si próprios”. Nem Bolsonaro, nem Trump se apresentaram para cumprir este papel colocando-se, antes, antes como patrocinadores da deserção enquanto a Covid-19 nos dá mais uma lição sobre os problemas de ação coletiva.
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