COVID-19 e a população indígena: o município de São João das Missões, MG

\"02\"Pollyana dos Santos
Mestre em Ciência Política pela UFMG

O município escolhido deste artigo, apesar de pouco conhecido, apresenta singularidades interessantes para serem discutidas. Além de ser um município dependente economicamente de transferência de renda dos programas sociais, apresenta confluência de atores e instituições quando o assunto é saúde pública. O município mineiro de São João das Missões, na macrorregião do Norte de Minas, era chamado de São João dos Índios quando era arraial no século XVIII1 , porque os seus primeiros habitantes são os indígenas da etnia Xakriabá, os quais correspondem a um número expressivo da população da cidade atualmente. Há 11.715 missionenses2, sendo que há 9.2213 indígenas na Terra Indígena Xakriabá (TI Xakriabá), homologada em 1987 e localizada em sua maior parte4 em São João das Missões (considerado município a partir de 1995).

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de São João das Missões é o menor de Minas Gerais (MG) – 0,5295 -, mas é importante considerar que a variável que mais impacta o resultado deste município é a renda, sendo que a população indígena Xakriabá, assim como boa parte da população indígena brasileira, apresenta relações de produção pouco monetizadas6 . Portanto, as atividades de agricultura, pecuária e confecção de artefatos que não são revestidas em dinheiro, mas que garantem a subsistência da comunidade de forma cooperativa, não são contabilizadas neste indicador. De qualquer maneira, apesar da inadequação do IDH como expressão fidedigna do nível socioeconômico da cidade, o Norte de Minas é considerado uma das regiões de MG mais vulneráveis e mais precárias no que diz respeito à infraestrutura de saneamento (principalmente abastecimento de água) e de saúde7 , e o município compartilha das mesmas dificuldades de outros municípios da região, como a ausência de leitos de internação. São João das Missões conta com três estabelecimentos públicos de saúde (e nenhum privado)8 , os quais não estão preparados para realizar internação de pacientes com complicações respiratórias decorrentes do COVID-19. Segundo um estudo desenvolvido pelo Grupo de Estudos em Economia da Saúde e Criminalidade, 156 municípios do estado (18% dos 853 municípios) apresentam as maiores dificuldades de acesso a leitos em MG, por motivos de distância igual ou maior do que 120 km, asfaltamento precário das estradas e déficit de meios de transporte adequados para o deslocamento dos pacientes. São João das Missões está incluso dentre esses municípios9.

Além disso, há particularidades dos povos indígenas que alarmam ainda mais a gestão municipal de São João das Missões. As doenças infectocontagiosas, especialmente as virais respiratórias, são uma das principais causas da mortandade da população indígena brasileira ao longo dos últimos 520 anos. Estudos diversos apontam que os indígenas são mais vulneráveis a epidemias em razão de condições socioeconômicas e sanitárias mais precárias do que a dos não-indígenas. Além disso, as distâncias geográficas, linguísticas, culturais e a insuficiência de profissionais de saúde que atuam na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) são condições particulares que tornam essa parte da população brasileira mais vulnerável ao novo coronavírus.

A PNASPI é a política de saúde pública do governo federal que orienta o funcionamento do Subsistema de Saúde Indígena (SasiSUS), pertencente ao Sistema Único de Saúde (SUS). O SasiSUS determina, desde 1999, que a organização territorial da atenção à saúde dos povos originários se dá no âmbito de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), que não corresponde aos mesmos limites geográficos dos municípios e estados. Assim, a atenção à saúde da população Xakriabá é de competência primeira do DSEI de Minas Gerais e Espírito Santo (DSEI MG/ES), que está vinculado diretamente à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que é uma das secretarias da estrutura interna do Ministério da Saúde. À Fundação Nacional do Índio (Funai), no que concerne à saúde indígena, cabe acompanhar as ações de saúde desenvolvidas pela Sesai e buscar parcerias para a condução da PNASPI10 .

No entanto, a saúde indígena não está restrita à coordenação dessas instituições federais. Estados e municípios “deverão atuar complementarmente, considerando que a população indígena está contemplada nos mecanismos de financiamento do SUS”11, pois os indígenas são munícipes, e o Piso da Atenção Básica (valor repassado pelo governo federal para o custeio da saúde municipal) contabiliza os habitantes indígenas locais também. Além disso, as unidades de saúde instaladas dentro das aldeias não têm a capacidade de realizar exames, internação e cirurgias. Conta-se, portanto, com as unidades municipais e estaduais para isso.

No caso de São João das Missões, a atuação municipal na saúde da população indígena é especialmente importante, visto que boa parte dos seus habitantes são indígenas. O atual prefeito, José Nunes de Oliveira, é Xakriabá, assim como sua vice, Dona Zita. Ambos são do Partido dos Trabalhadores (PT), e Zé Nunes, como é mais conhecido, está em seu terceiro mandato (2005-2008; 2009-2012; 2017-2020). No dia 18 de março, dois dias antes do Decreto de calamidade pública em MG, do governador Romeu Zema (Novo), e sem registro de casos no município, o prefeito Zé Nunes publicou um Decreto restringindo atividades, suspendendo as aulas, dispensando licitação para aquisição de bens, serviços e insumos de saúde destinados ao enfrentamento do COVID-19, recomendando bares e restaurantes a realizar entregas a domicílio e solicitando que as instituições religiosas suspendessem seus eventos. A comunicação da prefeitura é quase que diária por meio do seu site12 e da sua página oficial no facebook13 , mas não há informações específicas sobre como tem sido o enfrentamento do vírus na TI Xakriabá.

No dia 03 de abril, a prefeitura notificou o primeiro caso suspeito de COVID-19 em indígena. No município, já há quatro casos14 , mas, de acordo com o boletim epidemiológico da Sesai, há apenas um caso suspeito de COVID-19 em indígena no DSEI MG/ES 15. O acompanhamento dos casos é extremamente importante assim como o isolamento das comunidades, porque a transmissão do vírus entre indígenas é facilitada devido ao compartilhamento de utensílios (como cuias e tigelas) e, também, porque vivem em casas coletivas.

Acompanhea série de artigos do Nepol


1https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/sao-joao-das-missoes/historico
2Dados do Censo de 2010. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/sao-joao-das-missoes/panorama
3Dados do Censo de 2010. https://indigenas.ibge.gov.br/images/pdf/indigenas/folder_indigenas_web.pdf
4Uma menor porção da TI Xakriabá situa-se no município de Itacarambi-MG.
5http://labcon.fafich.ufmg.br/idh-m-dos-municipios-de-mg/
6http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-30982009000100005
7https://geesc.cedeplar.ufmg.br/wp-content/uploads/2020/04/Nota-tecnica-final-COVID_19_MG-05-Abril.pdf
8https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/sao-joao-das-missoes/pesquisa/32/28163
9O munícipio se encontra a 247 km de Montes Claros, município polo da região Norte. A cidade mais próxima com porte hospitalar médio, onde há 45 leitos, é a cidade de Januária, a 84 km.
10No dia 13 de abril, o jornal Estadão revelou que a Funai recebeu R$10,840 milhões de recursos emergenciais para usar no combate ao avanço do COVID-19, mas que esse recurso não havia sido utilizado ainda (https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,funai-recebe-r-11-milhoes-para-proteger-indigenas-do-coronavirus-mas-nao-gastou-nenhum-centavo,70003269873). No Brasil, até o dia 14/04, já são 22 casos suspeitos em indígenas e três mortes de acordo com o Boletim da Sesai
(http://www.saudeindigena.net.br/coronavirus/pdf/14_04_2020_BoletimepidCOVIDSESAI.pdf).
11BRASIL, 2002. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígena. p. 26.
12https://saojoaodasmissoes.mg.gov.br/site/
13https://www.facebook.com/sjmissoesmg
14https://g1.globo.com/mg/grande-minas/noticia/2020/04/14/coronavirus-em-14-de-abril-veja-dados-na-area-de-cobertura-do-g1-grande-minas.ghtml
15http://www.saudeindigena.net.br/coronavirus/pdf/14_04_2020_BoletimepidCOVIDSESAI.pdf

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